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O que tem de ser, tem muita força

A composição do ajustamento orçamental dos próximos anos tem sido alvo de análise detalhada.

A composição do ajustamento orçamental dos próximos anos tem sido alvo de análise detalhada. Nesta nota centramo-nos na informação disponível no Documento de Estratégia Orçamental (DEO) relativa ao outro grande eixo de acção do programa de ajustamento: a agenda de transformação estrutural da economia portuguesa, em particular em três elementos relacionados com a competitividade: a carga fiscal, a desvalorização fiscal e a desvalorização real.

O principal pólo de discussão tem-se centrado no aumento da carga fiscal, uma decisão que contrasta com o objectivo de reposição de maior capacidade competitiva da economia. É verdade que a relação entre o nível de carga fiscal e a competitvidade não é linear. Compare-se a carga fiscal implícita na estratégia orçamental de médio prazo do DEO com os níveis médios registados pelos países da área do euro e a nossa ainda é inferior (39% do PIB na área do euro 2009, contra valores na ordem de 37% do PIB, considerando a soma da receita fiscal com as contribuições sociais). Adicionalmente, diversos países europeus apresentam cargas fiscais bem mais elevadas do que Portugal e não exibem problemas de competitividade tão acentuados quanto os nossos. Os EUA, com um regime fiscal menos oneroso, apresentam um desequilíbrio externo significativo. Portanto, visto de forma isolada, o argumento da carga fiscal enquanto factor limitativo do potencial de crescimento económico é insuficiente. Mas, também não se pode ignorar que a competitividade fiscal tem sido um instrumento de política importante em muitos países europeus, até fonte de tensões, e que a competitvidade é resultado de contributos múltiplos, incluindo a fiscalidade e o suporte político e social às medidas de austeridade.

No campo oposto, e classificada como elemento chave no Programa do Governo para aumentar a competitividade da economia portuguesa, surge a "desvalorização fiscal". É uma medida emblemática mas que, face à difícil implementação e incerteza de resultados, o Governo optou por remeter para uma situação quase experimental. O objectivo desta medida é reforçar a competitvidade-preço dos bens e serviços nacionais face aos concorrentes estrangeiros. No caso português, estuda-se uma redução da Taxa Social Única, a ser compensada por geração equivalente de receita em IVA. A redução da TSU influencia os custos com o trabalho e, se transmitidos aos preços finais e dinamizarem as vendas, incentiva a produção nacional. O IVA onera o consumo, com eventual impacto nas importações, e compensa a quebra da receita com as menores contribuições sociais. Dois parâmetros para melhor enquadrar a decisão: o primeiro é que as contribuições para a Segurança Social representam uma parcela relativamente pequena dos custos das empresas (cerca de 5% no agregado da economia, embora com cambiantes apreciáveis em função do sector económico); o segundo, alguns estudos mostram que, por cada 2 p.p. de redução da TSU, o IVA tem de ser ajustado em termos equivalentes em cerca de 1 p.p.. Assim, percebe-se que, para que a medida tenha relevância nos custos das empresas, o corte na TSU tem de ser pronunciado, o que exige, em contrapartida, um ajustamento significativo no IVA (sem considerar margens de segurança necessárias conforme referido no DEO). Perante este dilema, a decisão pendeu para a aplicação faseada, experimental, e atenua a relevância desta medida enquanto propulsor da competitividade da economia portuguesa.

À dificuldade de, a muito curto prazo, as iniciativas fiscais exerceram um efeito dinamizador na competitividade da economia portuguesa, contrapõe-se a influência dos mecanismos regulares de mercado nesse sentido. Essa desvalorização real - por incómoda que seja a implicação nos nossos padrões de vida - está e continuará em curso. Tomemos como referência o índice de custo do trabalho. No segundo trimestre deste ano, este índice apresentou uma variação homóloga negativa de 0,6%. Variações negativas são caso raro desde 2008. Duas curiosidades: (i) nos sectores mais abertos à concorrência externa o ajustamento no custo do trabalho é mais intenso - como é o caso da indústria, do alojamento, restauração e transportes -, nos sectores mais abrigados, ocorre o inverso; (ii) se confrontarmos este indicador com os níveis de desemprego regionais (NUTS II), é possível fazer uma associação, grosseira, onde as regiões com maior moderação nos custos do trabalho nos últimos anos tendem a exibir taxas de desemprego inferiores (p.ex. a zona centro). Numa comparação internacional, com outros estados membros - apenas possível para dados do primeiro trimestre -, Portugal regista maior moderação nos custos do trabalho neste ano face à média da UE-27. Finalmente, comparando indicadores que englobam os preços finais e não só os custos do trabalho, como por exemplo os índices harmonizados de competitividade calculados pelo BCE, é bem visível que não estamos isolados neste esforço. Em termos médios, até ao segundo trimestre, face ao início da crise (arbitrariamente estabelecido para este propósito no final de 2007), os preços dos bens e serviços portugueses desceram face aos principais parceiros comerciais cerca de 2 a 3%. Mas, por exemplo, na Irlanda a mesma variação é de -9%. Na Alemanha foi de -6%. Se a estes valores acrescentarmos o efeito da produtividade, a intensidade da concorrência é ainda mais evidente: Portugal regista uma queda dos custos unitários de trabalho relativos na ordem de 1% desde o final de 2007, contra uma variação na área do euro na ordem de -6%.

O objectivo último do programa de ajustamento é a redução sustentada dos níveis de endividamento da economia portuguesa. Implica uma relação diferente entre capacidade exportadora e consumo interno da que tivemos nos últimos anos. A melhoria dos termos desta relação depende da capacidade de sermos mais competitivos, de forma persistente. Na medida em que as restrições orçamentais adiem os ajustamentos discricionários propulsores de competitividade ou que a sua materialização dilate no tempo, e se mantenha ou intensifique a concorrência externa, maior o ónus sobre a desvalorização real da economia portuguesa necessário para assegurar a sustentabilidade de longo prazo.



Gabinete de Estudos do Millennium BCP
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