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Opinião
04 de Fevereiro de 2005 às 13:59

O puritanismo padreca

O baixo nível da «classe política» tem-se manifestado, aqui e ali, com a irrisão que merece o fait-divers e a apreensão que em si mesmo comporta.

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Mas os acontecimentos assumiram proporções inauditas. As insinuações de homossexualidade atribuídas por um a outro candidato a primeiro-ministro não são, apenas, repulsivas; configuram uma grossa canalhice, pelo que envolvem de hipocrisia e de puritanismo padreca.

Francisco Louçã abrira o precedente. O que alcovitou, no debate com Paulo Portas, não foi um «deslize» de linguagem, sim o aríete de uma afronta. Absolutamente indesculpável, em todo o caso, e, mais ainda, provindo de quem se deseja paladino das grandes virtudes. Estes cenários são questões adstritas à pobreza de estatura moral e à ausência de estirpe de uma gente que emergiu da crise de valores, sem ter de nos oferecer outra alternativa se não aquela que representa.

O discurso de Pedro Santana Lopes constitui a devolução da sua própria imagem intelectual. De qualquer das formas, não o presumia capaz de entrar numa vereda tão perigosa quanto nojenta. É um falar de estrebaria, este, utilizado por quem deveria preservar a dignidade das funções, e demonstrar mais tento e sensatez nos seus comportamentos. Porém, a vida política portuguesa, protagonizada por senhoritos de tal jaez e estilo, teria de ser o que é, sem atenuantes. O baixo nível resulta do reduzido extracto cultural, ético e cívico de uma gente que, sistematicamente, tem destruído o País, e o que dele resta de princípios.

Pedro Santana Lopes diz o que diz e, como lhe convém à visagem, apresenta-se com o pesaroso ar de vítima. Já não pega. A acentuação do registo de confronto vira-se contra ele. Como contra Louçã se virou a simpatia até então envolvente à pessoa e ao discurso. O nosso viver tem vindo a degradar-se progressivamente. E a Imprensa é, por igual, responsável. Há anos, um repórter, Manuel Catarino, interpelou, de chofre, Paulo Portas: «O senhor é homossexual?», a pergunta veio estampada, letras gordas, no «Tal & Qual».

A atmosfera de beligerância que se vive em Portugal reflecte a esquizofrenia que se instalou em todos os sectores da sociedade. E o pior de tudo é que os grandes infractores são os grandes impunes. Depois de tudo isto passar, ninguém pede contas a ninguém, mas algo ficou definitivamente amolgado na convivência social.

Na entrevista a Judite de Sousa, o candidato José Sócrates demonstrou uma firmeza e uma grandeza notáveis. Sem uma só vez perder o domínio da situação (e o caso não seria para menos), ele respondeu às atoardas, aos boatos e às insinuações de que tem sido objecto com invulgar dignidade. Um grande momento de exercício da política.

APOSTILA - Convido o meu Dilecto a ler «Crónica Jornalística - Século XIX», edição Círculo de Leitores, de um dos nossos mais probos e rigorosos investigadores: Ernesto Rodrigues. Uma selecção notabilíssima, antecedida de um extenso, lúcido e luminoso prefácio, que nos resgata das horas tenebrosas que temos vivido. É o grande e honrado jornalismo português, como sempre elevado à condição de grande literatura. O Dilecto pode (e deve!) adquirir este precioso volume na loja do Círculo, Rua do Ouro. Vá por mim!

MORTE DE UM GRANDE ACTOR

Henrique Canto e Castro morreu com 74 anos. Dizer que foi um dos maiores actores portugueses é dizer pouco. Porque em Canto e Castro coexistiam o homem de cultura, a inteligência superior, um raro ser humano, e uma integridade que tinha a exacta dimensão do seu enorme talento. Vivia com modéstia e discrição, afastado das confusões e da frivolidade, sem nunca afastar do seu comportamento uma forte componente cívica e ética. Para arredondar a conta ao fim do mês recebia (merecidíssimamente) o subsídio de Mérito Cultural, que lhe foi retirado por um governo dado às más-letras. Maltratado por um país que despreza os artistas, Canto e Castro nunca soltou um queixume, jamais protestou contra o que lhe tinham feito. Curvo-me, comovidamente, perante o querido amigo de adolescência, orgulhando-me por haver com ele convivido, durante anos inesquecíveis.

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