Opinião
O projecto de reforma da acção executiva
Com o sistema vigente, e tendo em conta o aumento gigantesco do crédito mal parado, os tribunais tornaram-se autênticas agências de cobrança de dívidas, deixando de ter tempo para os conflitos.Rui Humberto Messias, Abreu Cardigos & Associados
Foi recentemente aprovado em Conselho de Ministros o projecto de reforma da acção executiva, através do qual o Estado visa não só acabar com as demoras por vezes insustentáveis do actual regime, como igualmente maximizar a satisfação dos direitos dos credores, promovendo a criação de um sistema que ataque rapidamente e de forma efectiva o património dos devedores.
Como comentário liminar, cabe louvar a iniciativa tomada em tão delicada área da litigiosidade social, pois que, com o sistema vigente e, especialmente, tendo em conta o aumento gigantesco do crédito mal parado, os tribunais tornaram-se autênticas agências de cobrança de dívidas, principalmente das entidades financeiras, deixando de ter tempo para dirimir os verdadeiros conflitos para os quais a atenção dos magistrados deveria estar virada em exclusivo.
Todavia, o projecto ora em análise tem vários pontos que merecem uma reflexão profunda. Aliás, as vozes criticas levantaram-se ainda o anteprojecto era recém-nascido, nomeadamente advogados, magistrados e igualmente vários docentes das faculdades de direito.
Não custa perceber o porquê do levantamento destas vozes, e nem se diga que se trata de meras agitações corporativistas, é que o regime tem mesmo pontos controversos, e pelo menos num caso concreto, de duvidosa constitucionalidade.
Embora o presente artigo não possa de todo esgotar nem sequer aflorar convenientemente todos os pontos do anteprojecto que merecem uma análise critica, parece-me que convém referir ao menos alguns aspectos que, pela sua maior importância, devem ser retidos.
Oficial público de execução gera dúvidas sobre constitucionalidadeAssim, o projecto preconiza entre outras medidas, a criação de uma nova figura, a do oficial público da execução, a quem seriam atribuídos os poderes relativos à efectuação de citações, notificações, penhoras e vendas judiciais.
Para além da omissão do estatuto profissional de tal nova figura, o que só por si é mais do que suficiente para criar perplexidade, certo é que os referidos oficiais passariam de acordo com o projecto a ter poderes que anteriormente se encontravam cometidos aos juizes.
De acordo com a proposta, o oficial da execução só se dirigirá ao juiz em caso de manifesta dúvida, caso contrário agirá praticamente sozinho e com controlo quase total sobre a execução, pelo menos em certos casos enumerados na lei.
A inconstitucionalidade da referida medida é mais do que previsível, é quase uma certeza. Os princípios da competência e da reserva do juiz são gravemente afectados com este regime, o que acarreta uma diminuição insustentável dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, pelo que o regime assim proposto parece violar o artigo 20º da Constituição, no tocante à tutela jurisdicional efectiva.
Também é prevista nesta reforma a criação de um registo de execuções. Se a ideia parece boa, pois permite um rápido acesso a informações sobre eventual património dos devedores, bem como sobre outras execuções pendentes relativamente ao mesmo sujeito, ainda assim a constitucionalidade do regime terá de ser aferida, especificamente a sua conformidade com o artigo 26º da lei fundamental, no que respeita ao direito ao bom nome, reputação e imagem, e bem assim a sua conformidade com a lei de protecção de dados pessoais.
Dependendo dos elementos em concreto que venham a ser carreados para tal registo quando o mesmo vier a ser uma realidade, só então se poderá avaliar a protecção da vida privada dos cidadãos.
Infelizmente, legisla-se primeiro e verifica-se a constitucionalidade depois. É pena. A pressa é e sempre foi inimiga da perfeição, e quando estamos a falar de direitos fundamentais, então o princípio deveria ser sacramental, e ainda mais num Estado de direito democrático.
Por outro lado, a preconizada criação de secretarias exclusivamente dedicadas às execuções parece ser uma boa solução, pois permitirá libertar as existentes e os seus funcionários para a restante lide judiciária. Assim se dotem as novas secretarias de meios humanos e técnicos que lhes permitam desempenhar as suas funções com dinamismo e efectividade.
Claro que o problema reside em que, se nunca se conseguiu até ao presente dotar os tribunais de meios humanos eficazes e suficientes, não será com certeza através de diploma legal que se poderá resolver tal deficiência. Enfim, vamos ter fé.
É cedo, muito cedo para tecer comentários sobre a reforma da acção executiva, esperemos que venha a permitir uma justiça mais célere e efectiva. Não nos devemos esquecer duma regra básica de qualquer sistema judicial.
É que a acção executiva, apesar de algo mal tratada pelos teóricos, a qual a consideram de certo modo o parente pobre do sistema, em virtude da sua pobre elaboração teórica, à qual não é alheia decerto a sua vertente essencialmente prática, é a única fase num processo judicial na qual a força do Estado de facto permite satisfazer o direito patrimonial do particular.
É por isso que é essencial, é por isso que tem de respeitar acima de tudo a Constituição, é por isso que é um instrumento legal ao serviço da paz social, e em última instância, da justiça efectiva.
Tenhamos pois esperança que a reforma em questão consiga melhorar o estado de coisas actual. «É que, para pior, já basta assim».
Rui Humberto Messias, advogado
Abreu, Cardigos & Associados
rui.h.messias@abreucardigos.com