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O Papa em Auschwitz

Foi difícil, à Alemanha, admitir a sua culpa na ascensão, auge e queda do nazi-fascismo. A tragédia monumental dos crimes cometidos em nome da ordem dos mil anos e da supremacia do povo ariano foi (tem sido, até hoje) de difícil e penosa aceitação.

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Hitler galga ao poder através de alguns anos de feroz intimidação nas ruas; de rios de dinheiro para propaganda, generosamente oferecidos pelos grandes banqueiros, pelas poderosas empresas de metalomecânica e siderúrgicas, pelas multinacionais ligadas aos interesses do carvão; e, também, devido à indolência da República de Weimar, cujos dirigentes aferiam a social-democracia como facto consumado. Adicione-se a isto a complacência amistosa das «democracias tradicionais», que viam em Hitler o grande travão ao desenvolvimento do «bolchevismo».

Em «The Appeal of Fascism», o grande historiador inglês Alastair Hamilton traça o percurso ideológico do nazi-fascismo e das surpreendentíssimas adesões que, em determinada fase do seu desenvolvimento, ele suscitou. O medo do «bolchevismo» e o desprezo pelo capitalismo compeliram muitos intelectuais e políticos «progressistas» a aprovar, como «extremamente viável e saudavelmente humanitário», o empreendimento de Adolf Hitler, protagonista de uma «terceira via». Não há «terceira via», como bem ensinou um pensador insuspeito: Benedetto Croce.

A ilusão desta gente não procede da ingenuidade: advém de uma posição de classe. É verdade que Aragon e Éluard teceram loas a Estaline, o grande opositor de Hitler; mas não é menos verdade que Gottfried Benn e Ezra Pound, igualmente poetas imensos, tangeram a lira em louvor do homem da «solução final». Aqui, a posição de classe é, também, de assinalar. Ninguém está inocente. E nenhum povo é imaculado.

A culpabilidade histórica da Alemanha foi passível de revisões e de branqueamentos. Porventura o mais audaz e culto paladino do revisionismo será Ernst Nolte, cujo ensaio «Les Mouvements Fascistes - l’Europe de 1919 a 1945» continua um documento importante, suscitador de querelas apaixonadas. Nolte defende que o nacionalismo contraria os «dogmas da razão», aprovando, afinal, as teses de Carl Schmidt, as quais justificam o genocídio e o latrocínio como resultados das «irracionais emoções».

A verdade é que os alemães «sabiam o que se passava». E foi contra o desinteresse generalizado e opondo-se à amnésia histórica que artistas da envergadura de Brecht, Heiner Muller, Günther Grass, Heinrich Böll, Enzensberger, Uwe Johnson, Christa Wolff, entre outros, ousaram despertar a adormecida consciência dos seus compatriotas. Esquecer pode ser momentaneamente cómodo, mas torna-se o corolário perverso de um acordo tácito entre a população que rejeita a responsabilidade. E o esquecimento deliberado de muitos não chega para fazer uma nação de todos.

O nazismo não foi, como pretende o Papa Ratzinger, resultado de «um bando de criminosos», usufrutuário de um poder de que «usara e abusara» indiscriminadamente, como «instrumento de destruição». Ratzinger, que foi membro activo das Juventudes Nazis, proferiu estas expletivas declarações no campo de extermínio de Auschwitz, aonde fora como romeiro, durante a recente visita à Polónia. O embaraço causado pelas afirmações papais não ocultou a vergonha que elas comportam. O nazismo resultou de um projecto político muito bem elaborado, respaldado em doutrinas filosóficas e interpretações históricas premeditadamente deformadas. Jornalistas, escritores, artistas, cineastas, actores, arquitectos cumpliciaram-se com o horror.

Não é só em «Mein Kampf» que se contém os objectivos do empreendimento assassino. Milhares de livros, e alguns de autores surpreendentes, apoiaram as teses antisemitas, nas quais se fundou e cimentou o poder de Hitler. Segundo essa gente, o «essencial para o bem da humanidade seria a vitória dos alemães sobre os judeus. Só então emergiria um mundo novo, no qual a tecnologia moderna poderia associar-se à cultura alemã tradicional, rural e hierárquica».

O Papa pode, como pôde, ignorar ou omitir a verdade; mas não deve, ou não devia: fica mal ao representante de Pedro. Ao tripudiar sobre a realidade histórica, fornece sólidas razões para a reflexão de George Steiner: «O próprio cristianismo está doente. Foi atingido em pleno coração (?) pelo paradoxo da revelação e pela doutrina, que engendrou não somente o Holocausto mas, também, milénios de violência contra os judeus». E adianta que, ao produzir a «teologização» radical da ordem política, a Igreja exerceu «uma pressão psíquica intolerável na consciência ocidental».

Ao pretender desviar as razões da crónica e elidir as efemérides e os prestígios da memória, Ratzinger prestou um péssimo serviço à Igreja vaticana, cada vez mais envolvida em dissidências imprevistas, escândalos brutais, desconfianças generalizadas e embustes grotescos. O compromisso do silêncio e o código do esquecimento vêm de longe. Pio XII, o Papa de Hitler, benzeu exércitos e canhões invasores; selou os lábios ante assassínios, latrocínios e torturas. Não esqueçamos o abate do deputado socialista italiano Matteotti, apunhalado pelos fascistas, e as sinistras palavras do filósofo Giovanni Gentile, ministro de Mussolini, que justificou o crime com esta frase: «A Itália dos bravos contra a Itália dos cobardes» - apoiada, «intelectualmente», por Pio XII.

No imediato pós-guerra, uma organização, «Ecclesia», ligada ao Vaticano, socorreu milhares de nazis, ajudando centenas deles a viajar, clandestinamente, para vários países da América Latina, dominados por sanguinárias ditaduras militares [»O Processo Barbie», de Ladislas de Hoyos. Livros do Brasil Editores].

Não foi, somente, de «um bando de criminosos» que se ergue a monstuosidade nazi. E os alemães não estão, historicamente, isentos da responsabilidade. É óbvio que, entre aqueles que aderiram ao nazi-fascismo houve quem o fizesse por gosto das honras e do poder, por servidão ou interesse sórdido. Porém, no essencial, está a recusa dos valores democráticos, e o apelo «à violência, à crueldade e à injustiça», segundo a definição que Marinetti deu da arte futurista.

APOSTILA 1 - A mão amiga de Domingos Duarte Lima fez-me chegar um precioso CD: a «Integral das Sonatas para Piano, de Fernando Lopes-Graça, tocadas pelo excepcional pianista António Rosado. É uma edição da Câmara Municipal de Matosinhos, e Duarte Lima esclarece a minha ignorância, salientando que aquele Município desenvolve assinalável actividade cultural. Um grato bem-hajam!

APOSTILA 2 - João Rodrigues deixou a Dom Quixote, um ano depois de Nelson de Matos ter sido coagido, pela força das circunstâncias, a abandonar o lugar a que dera grandeza e prestígio. Ambos em desacordo com a «política editorial» do patronato. Ambos grandes editores. A ofensiva das exigências comerciais contra as necessidades culturais vai ganhando terreno. Na Imprensa portuguesa, o assédio começou nos anos 80. Venceu a astúcia ideológica de «gestores» que tão depressa estão numa fábrica de sabões como numa instituição bancária, e perdeu a democracia, que pretende estar em toda a parte e, afinal, não está em parte alguma.

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