Opinião
O pano e a nódoa
Na prática: governador e administradores do Banco de Portugal só não dizem «não» ao governo ou a outro qualquer poder ou interesse alheio à missão do SEBC? se não quiserem.
Uma das mais relevantes conquistas da União Económica e Monetária foi a instituição de um Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) com níveis de autonomia face a poderes e interesses políticos sem paralelo em termos mundiais.
Fortemente inspirada no modelo do Bundesbank alemão, a instituição do SEBC dotou o Banco Central Europeu (BCE) e os bancos centrais nacionais da área do euro de um estatuto em que estes passaram a gozar de independência total no cumprimento das suas funções, acantonando os Estados à condição de «donos» sem capacidade real de interferir na gestão do «seu» banco central.
Entre nós, assim se pôs termo em definitivo a uma era em que o Banco de Portugal foi severamente instrumentalizado pelo poder político, compelido a desenvolver uma intervenção monetária subordinada às necessidades de financiamento do sector público e chamado a intervir como bolsa de sustentação do sistema bancário durante o longo período em que vigoraram limites à concessão de crédito (de 1978 a 1991, e cujas sequelas se prolongariam pela década de 90).
Porque a cartilha da moeda única parte do pressuposto de que a independência é fundamental para o êxito operacional de um banco central, o Banco de Portugal goza hoje de autonomia plena na sua actuação. E só assim o «Eurosistema» - clube que integra o BCE e os 12 bancos centrais nacionais dos países que adoptaram o euro - possui todos os instrumentos, poderes e competências necessários para conduzir uma política monetária eficaz.
Vale a pena recordar as dimensões essenciais da independência do Banco de Portugal. Desde logo, ao nível do estatuto do SEBC, nenhum banco central - dever que abrange todos os membros dos seus órgãos de decisão - deve procurar, ou aceitar receber, instruções de qualquer outro organismo, sendo que as instituições comunitárias e os governos dos Estados-membros são obrigados a respeitar este princípio.
Num segundo plano, a independência prolonga-se ao nível das relações financeiras com as administrações públicas. Assim é-lhe expressamente proibida a concessão de descobertos ou de qualquer outra forma de crédito ao Estado e serviços ou organismos dele dependentes, a outras pessoas colectivas de direito público e a empresas públicas ou quaisquer entidades sobre as quais o Estado, as Regiões Autónomas ou as autarquias locais possam exercer uma influência dominante. Sendo ainda vedado ao Banco de Portugal a garantia de obrigações do Estado ou de outras entidades públicas, bem como a compra directa de títulos de dívida emitidos pelo Estado ou pelas mesmas entidades.
E, num terceiro nível, a independência projecta-se ao nível das garantias que a lei estabelece em favor da autonomia de actuação dos titulares de cargos de direcção no Banco de Portugal, tanto ao nível da duração dos mandatos para que são nomeados (com a duração mínima de 5 anos) como, sobretudo, da sua inamovibilidade no cargo, estando assim estabelecido que (cf. art.º 33.º da Lei Orgânica) «O governador e os demais membros do conselho de administração só podem ser exonerados das suas funções caso se verifique alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 14.º dos Estatutos do SEBC/BCE», ou seja, se deixarem de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas funções ou se tiverem cometido «falta grave».
Portanto, e na prática: governador e administradores do Banco de Portugal só não dizem «não» ao governo ou a outro qualquer poder ou interesse alheio à missão do SEBC? se não quiserem.
Vem tudo isto a propósito do envolvimento do governador do Banco de Portugal e de quadros da mesma instituição na «Comissão para a Análise da Situação Orçamental» que, a demanda do governo, aceitou e executou a incumbência de reestimar o nível do défice das contas públicas para 2005, na base do «se nada for feito para corrigir a trajectória dos números». Missão cumprida, os seis-vírgula-oitenta-e-três por cento suscitaram as mais diversas reacções, entre boquiabertos, indiferentes e conformados.
O facto nem foi inédito. Pois que, já em 2002, a solicitação do governo PSD, o governador e outros quadros do Banco de Portugal se haviam prestado a tarefa de idênticos contornos, no âmbito da uma «Comissão para a Análise das Contas Públicas», cujo trabalho foi politicamente aproveitado para chacinar na praça pública a governação de Guterres e de inspirar o lema da «tanga».
Num caso e no outro, seguramente não estão em causa nem a boa-fé, nem o esforço de rigor técnico dos relatórios produzidos pelas ditas «Comissões» aos clientes-finais da encomenda, que nem uma ou outra «gralha» posteriormente detectada compromete na substância. Está em causa, isso sim, o estatuto de autonomia e independência do Banco de Portugal face ao poder político, inequivocamente beliscado quer no episódio de 2002, quer na versão de 2005.
Invocar-se-á que «Compete especialmente ao Banco, sem prejuízo dos condicionalismos decorrentes da sua participação no SEBC [?] aconselhar o Governo nos domínios económico e financeiro, no âmbito das suas atribuições», nos termos do artigo 12.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal. Todavia, essa escapatória está longe de ser convincente. Aliás, na edição de 2002, o relatório entregue a Durão Barroso incorporava uma introdução, pessoalmente assinada por Vítor Constâncio, em que este expressamente reconhecia: «Embora o assunto não se inclua nas competências normais do Banco de Portugal?».
Não se enquadra nas competências «normais». Então, ou é frete, ou voluntarismo generoso. Como se isso não bastasse, de passagem por Portugal e à margem das conferências que proferiu, o ex-presidente do BCE revelaria que polidamente recusara um pedido semelhante que a rainha Beatriz da Holanda em idos tempos lhe dirigira.
Mas o episódio não se queda por aqui. É que o recurso às ditas «Comissões» é bem revelador do cheque de incapacidade que sucessivos governos endossam ao Tribunal de Contas, organismo que a Constituição no seu artigo 214.º consagra como «o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas», cujo Estatuto expressamente o incumbe da «fiscalização da legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas» e que dispõe de um conhecimento profundo, acumulado ao longo de décadas, das deficiências, vícios, e causas dos desvios que sistematicamente se verificam nas contas públicas portuguesas. Será que não convém dar a devida importância ao Tribunal de Contas?
Lá diz o ditado, no melhor pano cai a nódoa. Sucede que, quase sempre, com algum cuidado todas as nódoas seriam evitáveis?