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Opinião
22 de Novembro de 2006 às 13:59

O novo museu do quai Branly

Não obstante todos os sinais de declínio da influência económica e cultural francesa no mundo a realidade é que a França não deixa de nos surpreender pela positiva. Aliando um notável espírito de procura de modernidade, ...

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Aliando um notável espírito de procura de modernidade, de dinâmica criativa e de atenção às tendências da época, foi recentemente inaugurado um novo museu no centro de Paris, perto de todos os outros grandes ícones culturais da capital, o Musée du quai Branly, também designado de Musée des Arts Premiers, reagrupando cerca de 300 000 objectos das civilizações de África, Ásia Oceânia e Américas, antes dispersos por outros museus ou outras colecções. O museu apresenta-se, igualmente, com um local de pesquisa, para investigadores nacionais e estrangeiros, nos mais diferentes domínios da História, das Civilizações, das Artes, das Culturas, etc., oferecendo um vasto e sofisticado conjunto de meios que, sem dúvida, não deixarão de atrair a nata académica do mundo inteiro. Até ao momento já foi visitado por cerca de 3,5 milhões de pessoas e a perspectiva é a de que este número se multiplique rapidamente, colocando o novo museu num patamar de atracção semelhante aos museus de primeiro nível, como o Louvre.

O museu surpreende imediatamente pela belíssima arquitectura que o enforma e mesmo descontando uma certa desarrumação interna dos espaços – talvez deliberada –, que dificulta uma apreensão da sua totalidade numa primeira visita, transporta-nos para diferentes dimensões da criação humana e para a relatividade da própria noção de modernidade que hoje está tão em moda invocar-se, por tudo e por nada. Quem pode com certeza afirmar que daqui a algumas centenas, ou mesmo dezenas, de anos, algumas daquelas peças ali expostas, antes consideradas expressões de arte primitiva, não vão ser consideradas obras-primas da Humanidade, quer pelo valor em si próprias quer pela influência que exerceram nas manifestações artísticas e culturais das civilizações contemporâneas?

Passeando pelos diferentes espaços e pelas diferentes épocas ali reunidas é impossível não pensar como um museu com aquelas características – e até mesmo dimensão – teria todo o sentido existir em Portugal, um país que criou, precisamente, com a sua acção histórica e a sua presença no mundo as condições para a integração global das civilizações de que aquele museu se constitui expressão e agente impulsionador. E, não podendo fugir à nossa formação de economista, impõe-se-nos imediatamente a ideia de como isso poderia ser útil na afirmação da identidade do país e na sua valorização no contexto actual do aprofundamento do relacionamento entre diferentes civilizações e de tendência para a criação de dimensões económicas cada vez mais globais.

Mas a verdade é que uma das principais limitações do país e, em particular, das suas elites, no momento histórico presente, está, precisamente, na dificuldade em assumir as suas características e identidade própria, a que se junta uma crise acentuada de auto-estima que não raro atinge as raias da auto-flagelação.

A temática do museu do quai Branly remete-nos, em particular, para a discussão interna em torno da eventual criação de um museu da língua portuguesa, recentemente retomada a propósito da visita do primeiro-ministro ao Brasil. E mais uma vez se revela a secular dificuldade de o país lidar com os assuntos que têm a ver com a construção da sua identidade e com a sua presença no mundo, ao contrário do que se passa com o Brasil que assume, sem complexos, a sua matriz lusófona, antecipando-se em muitos anos a Portugal na construção de um magnífico monumento à língua portuguesa em São Paulo e posicionando-se, já hoje, como o grande impulsionador da difusão do português à escala mundial. Em Portugal, pelo contrário, aprofundam-se divergências em torno de questões de gramática e de ortografia e elege-se a introdução do ensino de inglês no primeiro ciclo do ensino básico com uma grande reforma estratégica.

É óbvio que o ensino da língua inglesa constitui hoje uma orientação básica de qualquer política educativa, tenha ela lugar aqui, dentro de portas, ou em qualquer outra parte do mundo. Mas, precisamente por isso, tem as suas próprias limitações estratégicas na medida em que não constitui um factor específico de diferenciação e de afirmação particular, ao contrário do que poderá acontecer com uma política activa de promoção e de difusão do português à escala internacional.

Com efeito, não se pode ter do português a mesma visão que se tem do holandês, do dinamarquês, do sueco ou até mesmo do italiano, que são línguas limitadas no seu poder de se constituírem veículos de atractividade ou de afirmação económica internacional. O português é uma língua falada directamente por mais de 220 milhões de pessoas, e como segunda ou terceira língua por muitos mais, com a particularidade de se espalharem pelos cinco continentes. Alguns dos países falantes estão entre aqueles de maior potencial de crescimento e de desenvolvimento futuro a que se juntam fortes comunidades de emigrantes presentes nos países mais desenvolvidos da Europa, na América do Norte ou da Austrália. E faz todo o sentido que seja objecto de uma política estratégica de afirmação e de expansão e seja utilizada, para além da dimensão cultural, como um instrumento privilegiado da diplomacia económica e de promoção geral do país.

Enquanto veículo de identidade e de expressão de uma comunidade lusófona pode ser um factor de afirmação colectiva, de produção de escala e de atractividade económica acrescida para cada país, individualmente, e para o conjunto. Nesta perspectiva, mais do que pensar-se numa réplica do museu de São Paulo em Lisboa, talvez fizesse mais sentido apostar-se na elaboração de uma estratégia global de promoção do português no mundo, utilizando para o efeito as características e o potencial de afirmação específico de cada país lusófono. Esta poderia ser uma das tarefas prioritárias da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP.

Mas não se pense que deixamos cair a ideia de criação de um museu ligado à língua e à cultura portuguesa. Só que a ambição terá de ser muito maior e o museu do quai de Branly pode ser uma referência para aquilo que importa fazer. Mais do que um museu da língua e cultura deve ser uma mostra dinâmica da presença lusófona no mundo e dos contributos de Portugal para a construção dos alicerces da economia global com que hoje nos confrontamos.

Algo que junte a memória do passado a uma vontade de enfrentar os desafios da globalização, apostando nas capacidades próprias, no empreendedorismo, na inovação tecnológica e, sobretudo, na recuperação da auto-estima.

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