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O Dr. Kildare

De todos os deslizes verbais do ministro Correia de Campos, e são muitos e frequentes, o mais infeliz foi certamente o da semana passada, quando a propósito da falta de pessoal médico no interior afirmou que: "nenhum ministro tem uma varinha mágica para a

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Confesso que dei um salto na cadeira. Juventude e "glamour" do Dr. Kildare? Estamos a falar dos anos 60 e de uma das primeiras séries televisivas dedicadas a médicos, género que, como se sabe, entretanto se tornou numa verdadeira praga. Por estes dias faz sucesso o Dr. House, sem nenhum "glamour" é certo mas algum carisma devido à bengala e a um humor corrosivo. A maioria dos portugueses com menos de 50 anos não sabe quem foi o Dr. Kildare. E ainda bem, acrescentaria eu, tal a lamechice da série. Pelo que a referência do ministro foi no mínimo deslocada e incompreensível. Mas a questão é outra. Como pode Correia de Campos convencer-nos que está a modernizar a saúde em Portugal quando as suas referências culturais datam do tempo do Dr. Kildare?

Esta história faz-me, aliás, lembrar António Guterres que ao mesmo tempo que prometia a modernização do país, no espaço de uma década, lembram-se?, não sabia o que era a arroba o símbolo do email. Muitos políticos não entendem que os pequenos sinais revelam mais sobre as suas capacidades e orientações, do que os grandes discursos e declarações oficiais.

Correia de Campos é claramente um caso de desfasamento entre aquilo que diz e aquilo que faz. Quero crer que está a realizar um bom trabalho, que se tem rodeado dos melhores profissionais e que tem suportado as suas decisões em estudos sérios. Mas aquilo que transparece é uma política errática e uma evidente incapacidade em explicar o que se está a fazer e as suas efectivas consequências para as populações e o país. Aconteceu com as maternidades. Acontece agora com o encerramento de algumas urgências.

Também não é fácil, há que reconhecê-lo. Portugal onde, apesar dos esforços da direita radical e de alguma esquerda confusa, o nacionalismo tem felizmente escassa importância, sofre de um regionalismo e bairrismo extremamente exacerbados. Tão irracionais e perigosos quanto o próprio nacionalismo.

Sendo certo que ninguém gosta que lhe retirem algum benefício e ainda mais para quem tem muito poucos, não é menos certo que uma boa parte deste tipo de manifestações é tanto contra o encerramento de maternidades e urgências numa determinada terra, quanto contra a sua promoção na terra vizinha. Os de Vila do Conde não querem ir para a Póvoa de Varzim, os de Valença recusam deslocar-se a Monção. A rivalidade provinciana, frequentemente explorada pelos próprios autarcas, é o que realmente anima muita desta gente. Até porque não estamos a falar de grandes perdas. Julgo mesmo que o programa de Correia de Campos é bastante moderado.

Basta aliás atender aos argumentos dos próprios: "Não é por haver outro hospital a três quilómetros de distância que se pode fechar a Urgência do Hospital de Vila do Conde" ou ainda "não passa pela cabeça de ninguém quererem obrigar-nos a fazer 15 quilómetros para irmos às urgências em Monção." Vê-se bem que não sabem o que é uma ambulância ter de atravessar a cidade de Lisboa em hora de ponta, o que por estes dias é praticamente a toda a hora. Afinal, estamos a falar de encerramentos parciais, nomeadamente nocturnos onde a clientela é diminuta, e alternativas no máximo a poucas dezenas de quilómetros. Nada que justifique tanta agitação.

Após décadas de total abandono sob o regime fascista, a democracia, com particular relevo para o poder autárquico, tratou de dotar as populações com os equipamentos necessários: escolas, hospitais, estradas, saneamento, serviços públicos. Raramente isso foi feito de forma racional. Em vez de unirem esforços e procurar sinergias cada autarca quis ter igual ou melhor que o seu vizinho. E por protagonismo, capacidade reivindicativa ou cartão partidário, muitos conseguiram que o governo central realizasse obras, tantas vezes muito onerosas e com enormes encargos futuros, sem qualquer lógica territorial e de baixa sustentabilidade económica. A duplicação de equipamentos, muito perto uns dos outros, é uma realidade por todo o país.

Chegámos assim a Correia de Campos e à pesada herança de uma rede de serviços de saúde totalmente desequilibrada e incoerente. Seria lamentável que por causa de uma evidente falta de talento comunicacional e um extravagante apreço pelo anacrónico Dr. Kildare, este ministro não fosse capaz de realizar as profundas reformas que o serviço nacional de saúde necessita. Até para garantir a sua sobrevivência.

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