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O caso Peter Handke

Peter Handke, escritor austríaco e um dos maiores de expressão germânica, deslocou-se à Sérvia a fim de assistir às cerimónias fúnebres de Slobodan Milosevic, em cuja tumba depôs uma flor.

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O burburinho tem sido enorme, como enorme é, até agora, o silêncio precaucionista dos seus camaradas de letras. Marcel Bozonnet, administrador da Comédie-Française, programara a peça de Handke, «Voyage au Pays Sonore ou l’Art de la Question» para ser encenada no Théâtre du Vieux-Colombier em 2007. Porém, a «atitude» do escritor encolerizou-o e decidiu, num acto evidente de censura, retirar a peça do programa. Bozonnet justificou-se, alegando que «a presença de Peter Handke nos funerais de Milosevic constitui um ultraje às vítimas», e adiantou que a sua decisão era «meramente pessoal».

O enorme equívoco começa nesta última declaração. Bozonnet cumpliciou todo o elenco da Comédie-Française numa atitude atribuladamente unilateral, enquanto Handke assumiu-a pessoalmente, sem arrastar ninguém no compromisso tomado. Outros equívocos são-lhe complementares, sobretudo quando Bozonnet não estabelece, para si, a separação entre figura pública e cidadão, aplicando-a a Peter Handke. Este é (pelos vistos) obrigado a não se empenhar politicamente, mas o administrador da Comédie fá-lo com desenvolta soberba. Além do que a questão não é, apenas, de ordem moral: mas sim política. Em nome de quê e de quem Bozonnet censura um artista cuja responsabilidade é singular e que, afinal, pouco tem a ver com a natureza do seu trabalho literário?

A tese é antiga. Platão expô-la de uma forma que Sartre, por exemplo, considerava pouco clara, porque as «épocas se sobrepõem e criam novas morais». O poeta não deve interferir nos assuntos da cidade, segundo o filósofo grego. Sartre, como é sabido, defendia a importância do intelectual engajado. Até agora, as duas escolas digladiam-se; e ambas reconhecem a inadmissibilidade de uma «terceira via». Tudo se pode e se deve problematizar: menos a questão da liberdade.

Peter Handke exerceu a liberdade a que tem direito.  Bozonnet molestou a liberdade de todos, quando limitou a liberdade de Handke. O dolo intelectual decorrente do facto de Bozonnet ter «agido segundo a própria consciência», como, reiterado, afirmou, assume aspectos inquietantes pelo que aduz de irresponsabilidade ou de zelo ideológico de sinal contrário. E o mais surpreendente deste triste caso é que Marcel Bozonnet é uma pessoa estimável, até agora tida, pelo seu espírito de modernidade e de vanguardismo, como aberta, disponível e tolerante.

As opiniões políticas de todos nós podem e devem ser criticadas. O que não implica a proibição ou a supressão de obras daqueles artistas cujas ideias ou práticas políticas exprimam, eventualmente, declarados ou mesmo encobertos apoios a regimes sinistros.  As veementes tendências nazis de Gottfried Benn, de Heiddegger ou de Ernst Jünger não ofuscam a grandeza do que escreveram. Céline, Brasillach, Pierre Drieu la Rochelle, Lucien Rebatet, Jouhandeau, Giraudoux, Montherlant, Cocteau cederam ao colaboracionismo e, amiúde, foram indivíduos desprezíveis, sem deixar de ser grandes escritores; assim como o imenso Knut Hamsun; ou Ezra Pound, T.S. Elliot, Percy Wyndham Lewis, William Yates, Kipling, Waugh, H.G. Wells.  Ou, ainda, D’Annunzio, Croce, Pirandello, Malaparte. É longa e tormentosa a história da indignidade intelectual, sem deixar de ser luminoso e inspirador o resultado artístico de muitos dos seus protagonistas. Drieu, esse, não foi assaltado pelo pejo, quando, em «Le Chef», escreveu: «Nous ne savons pas ce qu’il faut faire, mas nous le férons».

A aferição do comportamento humano é sempre discutível, sobretudo em momentos onde o transe histórico se substitui à razão de ser. Todavia, não há comparação entre a traição à pátria e a ida a um funeral, mesmo que o morto tenha sido considerado, em vida, uma criatura sórdida. Mesmo assim, suprimir das livrarias e das bibliotecas os livros dos autores apontados não deixa de ser uma infâmia.

Neste assunto Handke-Bozonnet pouco são os escritores, actores, artistas até agora defensores do austríaco. A Imprensa de Direita, sempre tão afobada em causticar as «posições insustentáveis» de quem lhe não é afim, cumpre a vocação e solta estridentes berros. A outra, com muita prudência e pouca virtude, encolhe-se, na expectativa matreira de ver como as coisas param. 

Não esqueçamos de que as ideias políticas expressas em atitudes da natureza das cometidas por Marcel Bozonnet são, habitualmente, compensações de um mesmo tipo de angústias privadas. Mas iluminam as contradições e as violências de uma época congenitalmente próxima daquilo que repugna todos os homens de bem e de liberdade.

Proibir, nunca; criticar, sempre.  

APOSTILA  -  O Campeonato Mundial de Futebol, canal tv fechado, só será visto por quem tiver dinheiro para pagar. As selecções de Angola, do Brasil, da Ucrânia, entre outras, estão, pois, impedidas de ser   apreciadas por cem mil ucranianos, vinte mil angolanos e cem mil brasileiros  -  tantos quantos aqueles que de Portugal fizeram a sua terra de trabalho e de vida.

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