Opinião
O braseiro II
O último texto que publiquei nesta coluna (25 de Agosto) foi dedicado ao tema dos incêndios florestais. Sustentei então que o Estado deveria assumir uma intervenção muitíssimo mais activa na gestão da floresta, se necessário mediante recurso a selectivas
O último texto que publiquei nesta coluna (25 de Agosto) foi dedicado ao tema dos incêndios florestais. Sustentei então que o Estado deveria assumir uma intervenção muitíssimo mais activa na gestão da floresta, se necessário mediante recurso a selectivas expropriações de propriedade privada votada ao desleixo e abandono, sempre que o interesse público o aconselhasse. A minha caixa de e-mail foi a prova de que vários leitores não apreciaram a sugestão.
Já depois, no blogue "Causa Nossa", o constitucionalista Vital Moreira assinou a 30 de Agosto um curto "post" sobre o tema (sic): "A questão dos fogos florestais tornou mais evidente que: (i) a propriedade privada e o mercado não garantem um ordenamento racional da floresta; (ii) o interesse privado não assegura a prevenção dos fogos florestais (nem o combate contra eles); (iii) a garantia de rendimentos privados implica enormes, e desproporcionados, custos públicos; (iv) a resposta ao flagelo impõe a intervenção do Estado, restringindo mais ou menos severamente o uso da terra para efeitos florestais ou impondo obrigações onerosas aos proprietários florestais."
A observação de Vital Moreira é lucidíssima. Em Portugal, a propriedade privada abrange 92 por cento do total de solos florestais (Tabela I). Como se pode constatar, é a mais elevada percentagem em toda a União Europeia a 15 e inusitadamente elevada a nível mundial. Mesmo nos Estados Unidos – país a que o epíteto de "pátria socialista" não assentará propriamente bem -, a quota pública da propriedade da floresta é de 44 por cento.
Assim, Portugal pontua como o paradigma da floresta privada. Nenhum mal daí adviria, acaso o controlo privado conduzisse a uma gestão exemplar dos solos e a uma exploração eficiente desse manancial de riqueza. A realidade é, contudo, abissalmente oposta. Na generalidade – e as excepções são sempre abençoáveis –, o domínio privado da floresta é um desastre em termos económicos, ambientais, paisagísticos e de ordenamento do território, e – doa a quem doer – a causa primeira da voracidade com que os fogos florestais se propagam.
"Falha de mercado" é o conceito que a Economia gerou para caracterizar fenómenos deste tipo. Na presença de uma "falha de mercado", de que decorre prejuízo para o interesse público e o bem-estar colectivo, é perfeitamente defensável a intervenção do Estado no sentido da regulação e reestruturação do mercado.
Tal como está, fragmentada, desordenada e caótica, a floresta não é economicamente sustentável, não existindo sequer estímulo à exploração racional dos seus frutos. Tal como está, o desleixo e o abandono continuarão a ditar regras. E por isso o braseiro continuará, impiedoso. Comprar aviões e helicópteros, fomentar a cooperação do exército e profissionalizar bombeiros no combate aos fogos constituem medidas seguramente necessárias, mas manifestamente insuficientes: é que actuam sobre as consequências e não sobre a causa fundamental da catástrofe ambiental que está a corroer Portugal: a desordem do ordenamento florestal.
Por isso mesmo, o gradual incremento da quota de propriedade pública da floresta portuguesa deveria figurar como instrumento prioritário de um programa de longo prazo. Não me permito quantificar metas precisas, mas um cenário que permitisse que, todos os anos, o Estado adquirisse 20 mil hectares de floresta significaria que, ao cabo de 20 anos, a propriedade pública passaria dos actuais 8 para 20 por cento do solo florestal. Os encargos poderiam oscilar entre 30 a 70 milhões de euros anualmente. Alguns dirão que é muito. Outros, que demoraria muito a que os resultados fossem palpáveis. Claro que sim. Reordenar a nossa floresta é missão para muitas décadas, e o barato sai caro.
Certo é que o argumento revoltará alguns espíritos. Uns vociferarão que o Estado até já gere solos florestais – e que gere mal, ao ponto de neste Verão uma área significativa de floresta pública não ter sido poupada ao braseiro. É a tese da "missão impossível", mais um pretexto para que nada se faça, para que a irresponsabilidade se perpetue e prossiga a caça aos costumeiros bodes expiatórios – o Ministro, os bombeiros, a protecção civil, as televisões e o tamanho da chama, etc, etc. Porque o infortúnio bate à porta quando quer, sempre há-de arder alguma floresta cuidada e conservada. Mas só a ignorância ou a incúria podem tornar defensável que o caos vigente e o seu exorbitante custo sejam preferíveis ao gradual alargamento das áreas submetidas a regimes de ordenamento mais cuidados.
Outros, apelarão ruidosamente a que o Estado suporte os custos do desleixo e do abandono a que a floresta é votada pelos seus proprietários. É a velha tese da nacionalização dos prejuízos e da privatização dos lucros: o Estado assume os riscos, o retorno fica em bolsos privados, fúrias e benevolências divinas ditarão o resultado final da refrega. Por fim, o argumento revoltará ainda os espíritos adeptos das teorias da conspiração – a acção criminosa de madeireiros, incendiários, câmaras e, até, de empresas que alugam meios aéreos de combate a incêndios –, reduto último da política de dolce fare niente dedicada a distrair a atenção do essencial.
Defender o reforço da intervenção pública na floresta portuguesa nada tem que ver com a consubstanciação de concepções mais ou menos estatizantes ou ultraliberais. Nas actuais condições, a lucidez reside em reconhecer de uma vez por todas que, por si só, o mercado é totalmente impotente para resolver o problema do reordenamento e aproveitamento racional da floresta. Se o país tem uma factura de longo prazo para pagar, ao menos que a pague sabendo que algo poderá vir a mudar para melhor.
P.S. – Superou as melhores expectativas o último "Prós & Contras" da RTP, dedicado à política de medicamentos. No país do faz-de-conta-que-concordo-contigo, é raríssimo que questões relevantes sejam discutidas sem entediantes pseudo-consensos. Com as reservas que várias posições anti-concorrenciais da Associação Nacional de Farmácias (ANF) merecem, tenho que admitir que o seu Presidente sabe bem o que diz e o que faz. Goste-se do homem ou não, ali está um interlocutor de respeito. O país precisava de mais gente assim.