Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
26 de Agosto de 2005 às 13:59

O braseiro

Em Portugal, uma larga extensão maioritária da mancha florestal encontra-se literalmente ao abandono. A propriedade privada domina, o minifúndio impera. Os proprietários não cuidam dos seus matos e florestas. Décadas a fio.

  • ...

Fica caro, dá trabalho, e - injustiça de lesa-majestade - ninguém lhes paga para tal, pois claro. Não sendo um sinal exterior de riqueza, possuir terras até pode dar algum, desde que nada se invista nelas.

Com toda a franqueza, já perdi a memória do último dia em que a abertura dos telejornais não nos brindasse com as imagens devastadoras de um qualquer braseiro de chamas, fumo e lamúrias. Imagino que a esta hora as direcções dos canais de televisão nacionais cogitem seriamente na redecoração dos seus estúdios: os amarelos quentes e os vermelhos vivos tornaram-se redundantes com as cores dos directos transmitidos até à náusea a partir de uma qualquer povoação recôndita.

Num texto que aqui publiquei em 27 de Maio último, referi: «O que vai acontecer este Verão? Só Deus sabe. Acontece, para nosso mal, que Ele já não presta serviços de consultoria na matéria. Assim, Portugal estará assim uma vez mais à mercê da lotaria dos caprichos climáticos, dos incentivos à acção dos incendiários e do «quem foi». [?] Não sabemos, também, o que entretanto foi concretamente feito no terreno - antes que o fumo chegue - para proteger a nossa floresta de mais uma chacina. Desejando o melhor, todos tememos o pior. [?] Merecíamos melhor. Muito melhor.»

Os dados estão aí. Até ontem, caminhávamos de passada larga na direcção dos 200 mil hectares de área florestal ardida só este ano. Uma vez mais, só Ele sabe quanto mais ainda irá arder até que o Verão se despeça. E os turistas que tenham percorrido a A1 - principal via de circulação rodoviária do país - ao longo deste Agosto terão por algum tempo ficado a suspeitar que talvez Portugal estivesse mergulhado numa qualquer chacina bélica sem tréguas ou se tivesse tornado no alvo da fúria de deuses particularmente cruéis. Em cadeias internacionais como a CNN, a CBS ou a Sky News, Portugal passa a imagem de um archote a arder.

As causas da tragédia são por demais conhecidas de há muito. E só uma mente ingénua poderá admitir que mais um relatório ou uma comissão governamental possa acrescentar o que quer que seja ao sabido diagnóstico. 

Em Portugal, uma larga extensão maioritária da mancha florestal encontra-se literalmente ao abandono. A propriedade privada domina, o minifúndio impera. Os proprietários não cuidam dos seus matos e florestas. Décadas a fio. Fica caro, dá trabalho, e - injustiça de lesa-majestade - ninguém lhes paga para tal, pois claro. Não sendo um sinal exterior de riqueza, possuir terras até pode dar algum, desde que nada se invista nelas. Pode sempre acontecer que, um dia, essa coisa da afectação à Reserva Agrícola Nacional (RAN) ou à Reserva Ecológica Nacional (REN) seja revogada e se possa finalmente construir aqueles prédios previstos num projectozinho parolo que vai acumulando pó numa qualquer Câmara sequiosa de receitas municipais. Depois, salvaguardadas as excepções, nem o Estado nem os Municípios dão o exemplo na conservação da floresta que é sua.

Aprende-se na escola que a floresta é um recurso natural, essencial ao ordenamento do território, à regulação do clima e do ambiente. A sua cuidada preservação é a melhor garantia de protecção do interesse público e colectivo que lhe é subjacente. E uma floresta protegida poderia constituir-se numa das maiores vantagens comparativas do país. Portugal alberga a sede do maior grupo mundial de produção de derivados da madeira e grandes unidades transformadoras posicionadas ao longo de toda a fileira florestal - madeira, aglomerados, painéis, celulose, papel, cartão. Todavia, paradoxalmente ou talvez nem tanto, o aprovisionamento de matérias-primas depende largamente da importação, dado o caótico estado em que a generalidade do parque florestal se encontra.

Mas o archote florestal é, sobretudo, o reflexo de um poder central fraco e hesitante. Apostado em desviar a atenção do que é verdadeiramente essencial. É cómodo apontar o dedo ao fantasma dos criminosos incendiários - mais pretensos do que reais - e propor agravamentos de penas, ou acrescentar mais umas páginas ao Diário da República com mais uma lei que ninguém vai cumprir nem fiscalizar.

Não tenho também a menor dúvida que a transformação deste braseiro à beira-mar plantado num país em que os fogos florestais atinjam níveis aceitáveis seja uma missão difícil e de longo prazo. Por isso, Portugal arderá de novo nos próximos Verões. Importará é que arda cada vez menos, na razão directa de medidas estruturais e de fundo que mexam com a propriedade e a gestão fundiária e a adopção de técnicas de prevenção e detecção de incêndios que permitam o seu combate atempado. E essa é uma missão para durar décadas, mas que pode começar já. Caso contrário, continuaremos a assistir a esse eterno jogo da batata quente que consiste em saber de quem são os aviões, quanto custa o seu aluguer, se os bombeiros são heróis ou vilões num combate absolutamente desigual, ou a polémicas insanas como essa de as televisões não deverem mostrar as chamas porque não-sei-quê?

Por isso, não vejo como as coisas possam ir sendo remediadas sem o recurso a uma corajosa reforma agrária - há que não ter medo das palavras - que, a pouco e pouco, corrija o apodrecido regime de propriedade e gestão dos solos abandonados por donos inconscientes ou sem meios. O recurso à expropriação dos solos abandonados e de alto risco de incêndio não pode continuar a ser a letra vã da lei. Mesmo correndo o risco de repetir um chavão cansado, a propriedade pública e a intervenção do Estado na economia operam supostamente ao serviço do interesse público e do bem-estar colectivo. A expropriação é uma figura prevista na lei portuguesa desde tempos imemoriais. Por alguma razão alguém lá a pôs.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio