Opinião
Mobilizar os Museus
"... o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada ideia do homem. Mas, os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus;" André Malraux (1)
I. INTRODUÇÃO
1. A Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian (2) é um lugar-excelência em Lisboa; neste lugar-leitura hiper-urbano estamos rodeados da mais verde paisagem onde a sensação de jardim e bosque se confundem tranquilamente. Que melhor lugar, tão cheio de um imenso acervo documental sobre arte, para "pensar" a interessante experiência de visita, como é o caso da que nos oferece a TATE MODERN GALERY (3) em Londres, acompanhada de um computador de bolso, vulgo PDA (4), proporcionando desse modo várias visitas sobrepostas, verdadeira experiência cibernómada.
2. O cibernómadismo pode definir-se como viagem que nos é proporcionada pela informação e comunicação que, em qualquer lugar, nos é acessível. Exemplo destas viagens é a navegação na Internet. O cibernómadismo ganha hoje um sentido mais profundo com as tecnologias de informação e comunicação móvel que nos permitem sobrepor na viagem que realizamos outras viagens que com ela se misturam.
3. Londres é, na Europa, uma enorme referência de cibermobilidade em múltiplos sentidos. O seu cosmopolitismo vivenciado num espaço urbano onde o património arquitectónico é preservado, onde se vive uma atmosfera local num espaço claramente central da rede global da informação e conhecimento em que se transformou o mundo. A cidade é uma face visivelmente forte da cibermobilidade, sobrepondo-se cada Londres, de forma intensa mas comunicante.
4. É neste contexto que se "move" a envolvente actividade da TATE MODERN GALERY, um museu de arte moderna construído numa antiga central eléctrica de Londres. A sua arquitectura é um exemplo paradigmático do conceito de cibernómadismo: no mesmo espaço misturam-se mas afirmam-se diversos tempos de forma subtil. Escreve Raymund Ryan sobre o edifício do museu " The policy of accretion and even fusion which the practice has adopted towards the Gilbert Scott building has, however, produced an archicture in which one cannot always distinguish between old and new." (5). É neste ambiente cibernómada que se descobre, através da experiência da visita acompanhada com um PDA (4), a informação mobilizada e "à mão" nas palavras de Heidegger ( 6 ), garantindo uma visita múltipla.
5. O museu, nas palavras de Malraux "... a posse permanente de espectáculos imaginários e seleccionados" ( 1, pág 18 ), pode conter em simultâneo o "belo Racional" (1, pág 18 ) dado pelo conjunto da exposição no espaço-museu e, ao mesmo tempo, a experiência da obra de arte em "comunhão com o mundo" (1, pág 12) na sua função originária através da contextualização informativa e individual de cada obra.
II. A APLICAÇÃO (a)
6. A TATE MODERN, com o patrocínio da Bloomberg, disponibiliza aos visitantes o Tate Modern Multimedia Tour, um PDA ( 4 ), mais especificamente um computador de bolso, onde está instalada uma aplicação com conteúdo multimédia: áudio, imagem e texto para nos acompanhar na visita e criar a experiência de um novo museu, o museu mobilizado, onde em cada obra somos acompanhados por uma informação profunda sobre o "exposto".
7. Trata-se de uma aplicação informática, um programa que permite sobre uma selecção de obras expostas, ler textos informativos sobre as mesmas, escutar o seu autor ou um comentário explicativo, ver fotografias ou curtos vídeos de outras obras ou de imagens que ajudem a preender como diria Jean Brun (7) o que fisicamente está diante do visitante. A aplicação permite também assinalar essa informação e recebê-la através de correio electrónico no endereço por nós indicado.
8. Para além da explicação sobre a respectiva obra, como acontece com os sistemas de áudio já utilizados em muitos museus é agora possível realizar diversas experiências, a saber:
a) Ter uma explicação sobre o enquadramento da obra exposta no trabalho do autor ou da corrente artística onde se insere, acompanhada por imagens de outras obras;
b) Ver pormenores da obra graficamente identificados numa imagem, onde com um toque no ecrã táctil se obtém um explicação dos mesmos;
c) Ver e escutar o próprio artista a comentar o seu trabalho ou assuntos relacionados;
d) Escutar uma música que nos transporta para o ambiente da obra no momento em que se aprecia a mesma, acompanhada por imagens relacionadas.
9. Para além destas experiências, é possível receber no endereço de correio electrónico que disponibilizamos à empresa gestora da aplicação, a informação que assinalamos durante a visita. A possibilidade de receber por correio electrónico informação escolhida, em formato multimédia, permite prolongar a visita, fazendo dela um ponto de partida.
III. CONSEQUÊNCIAS
10. Estas possibilidades da informação "à mão", na expressão de Heidegger ( 6 ), quando visitamos um museu ou uma exposição e a sequência de informação que podemos obter em seguida criam possibilidades enormes que não nos podem escapar até pelas suas consequências económicas.
11. Colocando a questão no campo da arte diz-nos André Malraux: para os museus, "Do século XVIII ao século XX, transportou-se o que podia ser transportado;" ( 1, pág. 13 ) ficando de fora tudo o que não o era: "As vitórias de Napoleão não lhe permitiram transportar a Capela Sistina para o Louvre, assim como nenhum mecenas levará para o Metropolitan Museum o Portal Régio de Chartres, os frescos de Arezzo." (1, pág. 13). Temos agora - devido às tecnologias de informação e comunicação móveis - a possibilidade de transportar muito mais, mesmo que por via digital e virtual, alargando de modo significativo o conteúdo da experiência da visita ao museu.
12. Seguindo ainda o caminho da arte podemos dizer que com esta aplicação atingimos o sentido do cibernómadismo na arte; transcrevamos Heidegger: ""Quando o repouso inclui movimento, nesse caso pode haver um repouso que é uma recolecção interior do movimento e, portanto, suprema mobilidade, supondo que o tipo de movimento exige um tal repouso. É precisamente deste tipo a quietação da obra repousando em si mesma. Aproximamo-nos, por conseguinte deste repouso se conseguirmos apreender completamente a mobilidade do acontecer no ser-obra."" (8)
13. Se no plano da arte se vislumbram implicações, no plano económico e social elas são claras. Na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos, o conteúdo informativo e a sua transmissão são a base do desenvolvimento e um valor na atracção de públicos.
14. Em qualquer país, mas em particular em Portugal, onde o turismo tem uma relevância significativa, é importante agregar valor à arte e ao património artístico que possuímos. Estas aplicações móveis podem melhorar e aprofundar a experiência da visita e permitir dar continuidade à relação que se pode estabelecer numa visita a um museu ou a um qualquer lugar.
15. Com a crescente globalização e a diversificação de públicos associada à pluralidade cultural dos visitantes, importa contextualizar a obra de arte sob pena de transformação do museu num lugar incompreensível. Diz Malraux: "Van Gogh desconfia de que é um grande pintor, não desconfia que será, cinquenta anos depois da sua morte, mais célebre do que Rafael, no Japão."
IV. CONCLUSÃO
16. Esta solução móvel aplicada a uma visita a um museu actualiza os significados de lugar-evento e lugar-situação no contexto da arte. O museu passa a ser o nó de uma rede de acesso contínuo à arte, onde o visitante cria o seu itinerário de visita e a contextualiza com suporte áudio, visual e de texto.
17. Não posso deixar de escrever uma nota sobre o fabuloso serviço prestado pela biblioteca da Gulbenkian. Há talvez 10 anos que não tinha o prazer de a frequentar. O atendimento, a tecnologia e a organização é, em tudo, um exemplo do que existe de melhor e foi determinante na realização deste artigo.
NOTAS
(a) http://www.tate.org.uk/modern/multimediatour
(1.) O Museu Imaginário, André Malraux, Edições 70, 2000, página 12 e 13, Edição Original: Éditions Gallimard 1965
(2.) Fundação Calouste Gulbenkian - http://www.gulbenkian.pt
(3.) Tate Modern - http://www.tate.org.uk/modern
(4.) PDA - designação corrente para "Personal Digital Assistant" em inglês e "Assistente Pessoal Digital" in: Wikipedia < http://pt.wikipedia.org/wiki/PDA >
(5.) Building Tate Modern, Herzog & De Meuron Tranforming Giles Gilbert Scott, Tate Gallery Publishing, 2000, Capítulo "Transformation", página 29, autor Raymund Ryan
(6.) Martin Heidegger, Ser e Tempo, Parte I, página 148 e seguintes, Tradução de Márcia de Sá, Cavalcante, 3 Edição, Vozes, Petrópolis, RJ, Brasil, 1989
(7.) Jean Brun, A Mão e o Espírito, Tradução de Mário Rui Almeida Matos, Revisão da Tradução de Artur Morão, Edições 70, 1991
(8.) Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Edições 70, Tradução de Maria da Conceição Costa, página 38