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06 de Janeiro de 2012 às 11:35

Metáfora do vendedor de jornais e do general

Em Jornalismo como em História a analogia é sempre permitida e, em ambos os casos, a metáfora nunca é exagerada.

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Em Jornalismo como em História a analogia é sempre permitida e, em ambos os casos, a metáfora nunca é exagerada. Utilizei amiúde as duas, quando, pelo vasto mundo que conheci, estabelecia comparações entre o que via e ouvia e a minha pátria. Aliás, nunca deixei de o fazer, e não me dei mal. Falo assim porque entendo, neste tropo de raciocínio, que esta gente no poder tem tratado o país e quem cá vive com tratos de polé.

O empreendimento político do Executivo de Passos Coelho tem como objectivo a demolição do Estado e do paradigma sob que temos vivido. Nunca é de mais repeti-lo. Este grupo tem como finalidade o exercício do poder pelo poder, e a circunstância, nada fortuita, de ser servil a uma troika de burocratas está de acordo com a ideologia de que é afim.

A besuntice com que a bancada da maioria tem defendido a ida do principal accionista do Pingo Doce para a Holanda, demonstra, amplamente, aquilo que a Direita é capaz de fazer. Mas aquele insigne patriota não é exemplar único. Pelo menos há vinte grandes empresas portuguesas que se "instalaram" naquele país para escapar aos impostos, dizem eles "exagerados" que se aplicam em Portugal.

Esta conversa serve para dizer que, durante anos e anos, andei pelo mundo. Assisti a actos de abnegação e coragem humanas absolutamente extraordinárias. E a baixezas inomináveis. A primeira vez que fui ao Brasil, e lá vivi durante seis meses, aconteceu em 1964. Eu era um miúdo deslumbrado e com a idade do mundo. Ia ao Rio para ouvir samba e assisti a um cruel golpe de Estado, patrocinado pelos Estados Unidos, com um mentor conhecido, o general Vernon Williams, poliglota, culto e expedito e, por isso mesmo, mais sinistro. Aprendi como a democracia é frágil e possui inimigos poderosos e implacáveis. Um Governo democrático, presidido por João Goulart, foi destituído pelos militares e obrigado a exilar-se. O DOPS, departamento da polícia política, praticou os desmandos mais atrozes e as barbaridades mais inqualificáveis. Pelo menos dois conhecidos portugueses, entre muitos mais, refugiados no grande país verde, são testemunhas das sevícias cometidas em nome de Deus, Pátria e Liberdade. São eles Alípio de Freitas, torturado no pau de arara, e tema de uma belíssima canção de Zeca Afonso; e Miguel Urbano Rodrigues, jornalista de gabarito, na altura editorialista de "O Estado de São Paulo", irmão de Urbano Tavares Rodrigues.

Assisti a cenas nas quais a barbaridade dos vencedores atingiu níveis por mim jamais vistos. Nessa ocasião, era redactor do vespertino "República" e enviei para o jornal prosas emocionadas e sónicas. Tempos depois, recebi um cabograma de Artur Inez, chefe de Redacção do jornal: "Mude de tom. A Censura cortou tudo." Ainda guardo esse documento.

Ora, todos os dias deslocava-me a uma banca de jornais, próxima do Hotel Miramar, em Copacabana, onde estava hospedado. O vendedor era um homem de meia-idade, robusto, cabelo branco e de catadura fechada. Resmungava muito e comentava comigo, as notícias do dia. Notoriamente era contra o golpe militar e, também notoriamente, simpatizava com o jovem português.

Certa manhã, apareceu fardado com a roupa do Exército e o peito coberto de medalhas. Soube, então, que fora expedicionário a Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, e se portara com um herói, em Monte Cassino. (Esta participação do Exército brasileiro na Guerra Mundial está excepcionalmente documentada num livro de crónicas do imenso Rubem Braga, que foi correspondente nas hostilidades. Numa primeira edição, o volume intitula-se "Com a FEB em Itália"; mais tarde, o título foi substituído para "Crónicas de Guerra." Nomeio aqui o livro e o autor, meu inesquecível amigo, na esperança de que alguns moços jornalistas os descubram, para prazer de leitura e proveito profissional.)

Perante a minha estranheza, explicou-me que, quase todos os dias, parava, em frente da venda, um carro do Exército, e de lá saía um general com a ordenança e fornecia-se de jornais. A má vontade do vendedor devia ser claramente expressa. E, noutra manhã, sempre fardado e com os símbolos da sua coragem, dirigiu-se ao general com os seguintes termos: "Porque é que os senhores não encostam o povo a uma parede, e acabam com isto?"

Não sei como acabou a história. Sei que continuei a ver o vendedor de jornais, já à civil, durante os meus tempos brasileiros. Agora, perante o estado em que se encontra população portuguesa, apeteceu-me contar este bravo episódio, e numa metáfora longínqua, formular a mesma pergunta a este nefasto Governo: "Porque é que os senhores não nos encostam a uma parede, e acabam com isto?"

A equivalência é abusiva? Não o creio.


b.bastos@netcabo.pt
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