Opinião
Mécia e Jorge
O espólio de Jorge de Sena foi entregue pela viúva, Mécia, à Biblioteca Nacional. Será bom que o País saiba agradecer este acervo, certamente notável, de documentos, manuscritos, cartas e livros que fizeram parte da vida do grande escritor. Da vida dele e de Mécia, a mulher que recusou ser o lugar de espera para ser a activa companheira de uma singularíssima aventura intelectual e moral.
O espólio de Jorge de Sena foi entregue pela viúva, Mécia, à Biblioteca Nacional. Será bom que o País saiba agradecer este acervo, certamente notável, de documentos, manuscritos, cartas e livros que fizeram parte da vida do grande escritor. Da vida dele e de Mécia, a mulher que recusou ser o lugar de espera para ser a activa companheira de uma singularíssima aventura intelectual e moral.
Mécia de Sena, a D. Mécia como é comummente tratada, proporcionou ao marido tudo quanto ele necessitava para produzir uma obra absolutamente invulgar. Cuidou do silêncio numa casa cheia de filhos; defendeu a privacidade de um escritor que sabia, como poucos, conversar com a eternidade das coisas; organizou a economia doméstica de um lar onde a abundância nunca fora sobejo; evitou o atrito, as mortificantes quezílias quotidianas; andou com ele de um para outro lado, sofrendo as vicissitudes de uma vida invulgarmente desafiadora. Mécia de Sena foi, sempre; e esteve, sempre.
É imperioso que se fale desta mulher extraordinária, com admirável talento para a escrita (conheço alguns textos de sua autoria, que, há tempos me ofereceu), que viveu e vive para defender a obra e a memória do marido. Conheci-a em 1977, durante as comemorações do 10 de Junho, que tiveram outro cariz devido à influência do Presidente Ramalho Eanes. Nessa oportunidade, Jorge de Sena, convidado oficial do Presidente, proferiu o famoso Discurso da Guarda, um poderoso documento cuja leitura deveria ser constante objecto de afeição e de estudo.
Eu fora à cidade alta enviado do jornal onde então trabalhava, o "Diário Popular", e, antes das cerimónias falara um pouco com Sena. Pareceu-me um pouco fatigado, sem nunca perder o fulgor da palavra e a veemência do gesto. Mécia de Sena lá estava, junto a ele, observando-o com os olhos do coração e a ternura de quem não sabe o que é a desistência. Saberia, já, que o marido se encontrava gravemente doente? Se o sabia, não o demonstrou. A fibra desta mulher não permitia o mínimo sinal de fraqueza. (Sena nasceu em Lisboa a 2 de Novembro de 1919, e faleceu a 4 de Junho de 1978, com um tumor na cabeça).
Dois anos antes, numa entrevista que me deu, afirmou ver "os velhos hábitos do Estado Novo"? a serem reconstruídos. A declaração caiu mal, mas a verdade dos factos ia-se lentamente confirmando. O grande autor de "Metamorfoses" e de "O Físico Prodigioso" trazia Portugal na alma e, na verdade, não o convidavam para coisa alguma, tendo sido, inclusive, recusado para professor da Faculdade de Letras. Sabia muitíssimo mais, era muitíssimo mais culto, diligente e activo do que a maioria dos lentes. Talvez por isso mesmo o haviam recusado. No meio disto, uma história tenebrosa, cuja responsabilidade cabe, inteira, a um catedrático em vigília de inveja.
O abanão não derrubou o ânimo de Mécia de Sena, demasiadamente combativa e digna para a desistência. Escorou o desgosto de Jorge com os incitamentos necessários à continuidade de uma obra formidável. "Sinais de Fogo", um dos maiores romances da literatura portuguesa de sempre, foi editado postumamente, entre outros livros, devido à constância e à persistência de Mécia de Sena.
Há dias, vi-a na televisão. Cheguei atrasado ao programa. Nem sequer sabia que o documentário iria ser exibido. A RTP gasta tempo e paciência em colaborar na imbecilização dos telespectadores, com o contrato do Cristiano Ronaldo, anunciando, vezes sem conta, o que o futebolista irá dizer. Quanto a falar, neste caso, de um filme sobre Jorge de Sena e Mécia, nem pensar. Foi o acaso do 'zapping' que me conduziu a uma parte do documentário, que me pareceu muito digno e didáctico. Como disse Manuel Viqueira, professor universitário, "a posteridade irá resgatar" o grande autor, imerso num oceano de silêncio e de ignorância, que seria muito maior não foram os esforços, os trabalhos, a grandeza e o amor de Mécia.
Portugal deve muito a Jorge de Sena. Jorge de Sena nada deve a Portugal. Durante os quarenta e oito anos de sequestro da pátria ele foi um dos que não admitiu a curva da cumplicidade e do silêncio. Representou o País com textos imprescindíveis, escreveu o que tinha a escrever e, também, porque Mécia o incitava, o estimulava. Ocasionalmente, ela manteve-se na sombra; mas nunca esteve por detrás dele: esteve sempre a seu lado, como a escora de uma casa que precisa de existir.
Há anos que nos carteamos. Agora, estou-lhe em falta: um pequeno acidente físico tem--me impedido de com ela falar. Mas Mécia de Sena sabe muito bem quanto a estimo e admiro. E essa grandeza eleva-se-lhe ao ponto de entregar a Portugal um espólio sem preço. Saiba, agora, o País corresponder, honrando a memória de Sena e beijando as mãos e Mécia.
Mécia de Sena, a D. Mécia como é comummente tratada, proporcionou ao marido tudo quanto ele necessitava para produzir uma obra absolutamente invulgar. Cuidou do silêncio numa casa cheia de filhos; defendeu a privacidade de um escritor que sabia, como poucos, conversar com a eternidade das coisas; organizou a economia doméstica de um lar onde a abundância nunca fora sobejo; evitou o atrito, as mortificantes quezílias quotidianas; andou com ele de um para outro lado, sofrendo as vicissitudes de uma vida invulgarmente desafiadora. Mécia de Sena foi, sempre; e esteve, sempre.
Eu fora à cidade alta enviado do jornal onde então trabalhava, o "Diário Popular", e, antes das cerimónias falara um pouco com Sena. Pareceu-me um pouco fatigado, sem nunca perder o fulgor da palavra e a veemência do gesto. Mécia de Sena lá estava, junto a ele, observando-o com os olhos do coração e a ternura de quem não sabe o que é a desistência. Saberia, já, que o marido se encontrava gravemente doente? Se o sabia, não o demonstrou. A fibra desta mulher não permitia o mínimo sinal de fraqueza. (Sena nasceu em Lisboa a 2 de Novembro de 1919, e faleceu a 4 de Junho de 1978, com um tumor na cabeça).
Dois anos antes, numa entrevista que me deu, afirmou ver "os velhos hábitos do Estado Novo"? a serem reconstruídos. A declaração caiu mal, mas a verdade dos factos ia-se lentamente confirmando. O grande autor de "Metamorfoses" e de "O Físico Prodigioso" trazia Portugal na alma e, na verdade, não o convidavam para coisa alguma, tendo sido, inclusive, recusado para professor da Faculdade de Letras. Sabia muitíssimo mais, era muitíssimo mais culto, diligente e activo do que a maioria dos lentes. Talvez por isso mesmo o haviam recusado. No meio disto, uma história tenebrosa, cuja responsabilidade cabe, inteira, a um catedrático em vigília de inveja.
O abanão não derrubou o ânimo de Mécia de Sena, demasiadamente combativa e digna para a desistência. Escorou o desgosto de Jorge com os incitamentos necessários à continuidade de uma obra formidável. "Sinais de Fogo", um dos maiores romances da literatura portuguesa de sempre, foi editado postumamente, entre outros livros, devido à constância e à persistência de Mécia de Sena.
Há dias, vi-a na televisão. Cheguei atrasado ao programa. Nem sequer sabia que o documentário iria ser exibido. A RTP gasta tempo e paciência em colaborar na imbecilização dos telespectadores, com o contrato do Cristiano Ronaldo, anunciando, vezes sem conta, o que o futebolista irá dizer. Quanto a falar, neste caso, de um filme sobre Jorge de Sena e Mécia, nem pensar. Foi o acaso do 'zapping' que me conduziu a uma parte do documentário, que me pareceu muito digno e didáctico. Como disse Manuel Viqueira, professor universitário, "a posteridade irá resgatar" o grande autor, imerso num oceano de silêncio e de ignorância, que seria muito maior não foram os esforços, os trabalhos, a grandeza e o amor de Mécia.
Portugal deve muito a Jorge de Sena. Jorge de Sena nada deve a Portugal. Durante os quarenta e oito anos de sequestro da pátria ele foi um dos que não admitiu a curva da cumplicidade e do silêncio. Representou o País com textos imprescindíveis, escreveu o que tinha a escrever e, também, porque Mécia o incitava, o estimulava. Ocasionalmente, ela manteve-se na sombra; mas nunca esteve por detrás dele: esteve sempre a seu lado, como a escora de uma casa que precisa de existir.
Há anos que nos carteamos. Agora, estou-lhe em falta: um pequeno acidente físico tem--me impedido de com ela falar. Mas Mécia de Sena sabe muito bem quanto a estimo e admiro. E essa grandeza eleva-se-lhe ao ponto de entregar a Portugal um espólio sem preço. Saiba, agora, o País corresponder, honrando a memória de Sena e beijando as mãos e Mécia.
Mais artigos do Autor
A ameaça pode atingir todos nós
03.03.2017
O despautério
24.02.2017
O medo como processo do terror
03.02.2017
Uma vida cheia de paixão e de jornais
27.01.2017