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28 de Fevereiro de 2002 às 14:21

Manuel Anselmo Torres: «Que choque fiscal?»

Se antes não for reduzida a evasão e a fraude fiscal, o choque fiscal do PSD, em vez de promover a equidade, arrisca-se a simplesmente distribuir inequidade.

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Reforma fiscal está «out», choque fiscal está «in». Entre uma coisa e outra, ninguém se entende no debate sobre política tributária em Portugal. O PSD chama «choque fiscal» à promessa de reduzir a taxa nominal máxima do IRC dos actuais 30% para 20% e de reduzir gradual e marginalmente a do IRS. Confrontado com a inexequibilidade orçamental da redução de receita corrente, explica que o «choque fiscal», ao contrário do que o seu nome sugere, não contempla qualquer redução significativa de receita, mas tão somente uma redistribuição do encargo fiscal. Essa redistribuição deverá conseguir-se através da redução ou eliminação de benefícios fiscais em sede de IRC e, eventualmente, de um aumento da taxa normal do IVA.

Não deve haver nenhum outro país da OCDE em que o debate sobre a reforma fiscal se centre nas taxas nominais de imposto. Ora, ninguém paga impostos sob a forma de taxas nominais! As pessoas pagam impostos em euros ou em dólares ou em libras. Por isso, quando noutros países se fala em reduzir ou em aumentar os impostos, diz-se quanto é que isso é em dinheiro. Impostos são dinheiro. Assim, as pessoas sabem do que é que se está a falar.

O defeito não é só do PSD. Nos seis anos em que o PS governou, foi sempre aumentando os impostos em relação ao produto interno bruto enquanto se gabava de «baixar os impostos», isto é, reduzir as taxas nominais. A taxa de IRC baixou de 36% para 30% e a colecta aumentou mais de 100%. A oposição calou, seguindo a estranha tendência nacional de valorizar as taxas nominais e desprezar a colecta.

Julgo que esta tendência pode ser atribuída a duas causas, uma cultural e outra educacional. A causa cultural é o desconforto que sentimos em falar de dinheiro, mesmo quando apenas de dinheiro se trata. Temos pudor em revelar quanto dinheiro temos, quanto ganhamos ou quanto gastamos. Choca-nos a nudez dos números com cifrão. Cremos que o dinheiro está mais perto do pecado do que da virtude.

A causa educacional é a nossa demonstrada incapacidade e proverbial resistência a fazer contas. A falta de tratamento estatístico é, de resto, uma das maiores fragilidades do sistema fiscal português. Ninguém sabe estimar com qualquer verosimilhança para-científica o impacto sobre a receita de qualquer medida fiscal. O melhor que se consegue são palpites.

Quando, depois, não se acerta, atribui-se o desvio à maior ou menor «eficiência do combate à evasão e fraude fiscal».

Conta-se que quando Ricardo Sá Fernandes foi apresentar ao recém-empossado ministro das Finanças, Oliveira Martins, o projecto da reforma da tributação sobre o património (que abolia a sisa e a substituía pelo IVA, com taxas e tudo), o ministro lhe terá perguntado qual seria o impacto sobre a receita. Ninguém tinha feito as contas e a reforma foi para o lixo.

É claro que o ministro já conhecia a resposta de antemão. Em Portugal, todo o reformador tributário sabe qual a taxa a dar ao imposto, mas desconhece a receita que o imposto há-de dar ou como é que o encargo tributário se reparte entre diferentes grupos de contribuintes. Tem apenas uma ideia. Noutros países, a reforma fiscal segue um percurso mais sensato. Primeiro toma-se uma decisão política sobre a despesa. Depois, pede-se a um grupo de economistas que encontre a forma mais justa, eficiente e simples de a financiar com impostos e finalmente pede-se a um grupo de juristas para traduzir isso em projectos de leis exequíveis.

Por cá, não. Vai-se logo ter com o grupo de juristas. Depois, estes passam sessões a dar palpites sobre as taxas que o imposto deve ter. «Acho que devia ser 5%»; «Não, no mínimo 7%»; «Bom, como é preciso apresentar um relatório, proponho uma taxa de consenso, 6%»; «Aprovado». De seguida, pede-se a uns funcionários da Administração Tributária que estimem a receita que daí resulta, para meter no orçamento do Estado. Finalmente, ajusta-se a despesa pública.

É certo que as coisas estão a mudar. Muitos jornalistas já confrontam os promitentes redutores das taxas com a pergunta «quanto é que isso custa?». Tavares Moreira, do PSD, explica que «uma descida de oito pontos percentuais em sede de IRC corresponde a uma perda de receitas na ordem dos 800 milhões de euros» (Público, 15/02/02). Não se sabe que contas são essas, nem onde estão os outros dois por cento do choque fiscal, mas é um começo.

Miguel Frasquilho, proclamado mentor do «choque», acrescenta que não haverá perda de receita fiscal, mas apenas uma transferência do encargo tributário daqueles que hoje sofrem IRC a uma taxa efectiva superior à média, que diz ser de 18%, para aqueles que hoje gozam de uma taxa efectiva de IRC inferior a essa média.

Mesmo assim, falta dizer «quanto» é que isso representa, para os diversos grupos de contribuintes. Sabemos (...segundo as contas do PSD) que mais de 800 milhões de euros – 20% da actual receita de IRC – vão mudar de mãos. Não sabemos «de que mãos» nem «para que mãos». Se o PSD sabe, deve dizê-lo. Se não sabe, não deve propô-lo. Sem as contas feitas, o choque fiscal arrisca-se a ser um exercício de tiro ao alvo móvel de olhos vendados. Tanto pode provocar uma redução da receita – incomportável neste momento – como um aumento dos impostos – afinal o contrário do que é proposto.

O choque fiscal, entendido não como choque de receita – como os seus detractores inicialmente julgaram – mas como choque de equidade fiscal, tem um mérito intrínseco, independentemente de quem «paga» e quem «recebe». Reduz a amplitude da variação das taxas efectivas de imposto, e aproxima a sua média do valor da taxa nominal. Assim, cada um passa a contribuir mais de acordo com a sua capacidade económica, e não de acordo com a sua capacidade de «espremer o sistema». O problema é que esse choque só resulta se as contas estiverem muito bem feitas, o que não parece ser o caso.

Mas, porventura, o maior problema do choque fiscal é que o seu mérito intrínseco é obliterado pelo fenómeno da evasão e da fraude fiscal. 18% será porventura a taxa efectiva média de IRC, mas é apenas a taxa sofrida por aqueles que pagam, sobre aquilo que efectivamente declaram. Ninguém sabe qual é a taxa efectiva «real» de IRC – a que incide sobre a soma dos rendimentos declarados e dos não declarados. Eu arrisco-me a dizer, sem qualquer pretensão científica, que ela anda abaixo dos 10%. Isso faz com que quem hoje pague 12% sem recurso à evasão ou à fraude venha a ser castigado pelo choque fiscal, passando a sofrer uma tributação efectiva cada vez maior face à média real.

É dos livros que a evasão e a fraude fiscal não detectadas pervertem os méritos intrínsecos de qualquer reforma fiscal. Se antes não for reduzida a evasão e a fraude fiscal, o choque fiscal do PSD, em vez de promover a equidade, arrisca-se a simplesmente distribuir inequidade. O primeiro choque fiscal de que o país hoje precisa é o choque da boa administração fiscal e da cultura de cidadania fiscal. Sobre isso, ainda não ouvi uma palavra ao Dr. Durão Barroso.

Manuel Anselmo Torres

Advogado

mat@gvtpt.net

Artigo publicado no Jornal de Negócios – suplemento Negócios & Estratégia

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