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Opinião
15 de Outubro de 2004 às 13:59

Isto anda tudo ligado

É impossível restaurar um campo histórico, na exacta medida em que o próprio movimento das ideias transforma a realidade numa presença em várias dimensões.

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A dicotomia Esquerda-Direita não é, somente, a forma ideológica que talha cada um dos lados: é um acto filosófico e uma permanente avaliação das relações de força. A Direita no poder, em Portugal, pratica a miséria da política, por absoluta inépcia e devastadora burrice, e, em consequência, impõe a política da miséria a uma larga faixa da população. O «discurso» ao País do primeiro-ministro é um tratado de ignorância, de desorientação e de acentuada carência ideológica. O homem apenas falou: não disse nada. Mas a Esquerda também nada diz. E, quando diz, apenas quer dizer que diz.

As genealogias dos dois campos esgotaram-se. As rupturas ainda não surgiram. Reabilitar as temáticas históricas que formaram o século XX é um disparate e uma averiguada demonstração de fraqueza. A Direita é o reflexo da Esquerda. Não existe uma sem a outra. E ambas condicionaram os discursos a uma arqueologia que já não suscita a curiosidade do nosso tempo. Nesta coluna já o escrevi. Repito-o. As debilidades originam a valorização de novos modos de comportamento e outras emergências da moral. E as coisas tornaram-se confusas, tanto para a Esquerda como para a Direita.

Foi deprimente assistir ao programa Prós e Contras, RTP, na última segunda- feira. A exigência de verdade impunha um mínimo de rigor ideológico e um pouco de leitura e estudo. Os mancebos que lá preopinaram pareciam saídos do mofo de um sótão. As insuficiências culturais reveladas, as dificuldades que sentiram em exprimir-se, o ilogismo enfatuado do que disseram constituem parte do retrato desta época.

A honra do convento foi resgatada por Francisco Louça e Jaime Nogueira Pinto. Manuel Alegre estava notoriamente fatigado. Houve momentos, breves momentos, em que qualquer destes três permitiu uma abordagem pedagógica sobre as distintivas patologias da Esquerda e da Direita. Porém, Fátima Campos Ferreira não os soube aproveitar.

A ligeireza intelectual do programa de segunda-feira tem paralelismos comparativos com o «caso» Marcelo. Muito de pitoresco e de patético envolve, também, o último episódio político da semana. E há omissões gravíssimas. Entre elas a continuada (e impune) supressão dos nomes dos jornalistas que têm sido saneados, compulsivamente reformados, colocados perante a inevitabilidade da rescisão de contrato, removidos para lugares subalternos e, amiúde, humilhantes, ou objecto de provocações incríveis.

É um rol de infâmias. A própria RTP contém um manancial de histórias que comporta sérias agressões à dignidade de jornalistas e à liberdade de Imprensa. E não há jornal, revista ou rádio portugueses cujo historial não inclua listas negras, afastamento de redactores, perseguições, remoção de comentadores incómodos. Sei muito bem do que falo. Adianto: todos os partidos, todos sem excepção, são culpados nesta matéria. O silêncio que em torno destas circunstâncias se faz, exprime o mal-estar que provocam, e as dificuldades que suscitam entre aqueles cujas declarações de ordem moral mais os obrigaria a pronunciar-se.

Independentemente do que penso sobre o silenciamento de Marcelo Rebelo de Sousa, e penso muito mal, até porque o comentador conserva um mutismo inquietante, esta trama talvez atice a discussão acerca da liberdade de Imprensa em Portugal, trinta anos depois de Abril. Armand Mattelard, um dos maiores estudiosos do problema, refere, aliás na trilha de Jürgen Habermas, que a liberdade de Imprensa, antes de ser um conceito é uma categoria, «feita de abstracções». Questão a dilucidar, até porque a utilização instrumental da comunicação em sociedade apresenta indicações de disposição sobre processos objectivos e objectivados.

A notícia, a reportagem, a crónica, o artigo, a entrevista, o comentário deixaram de constituir uma função social para se transformar num negócio. Cada palavra custa uma fortuna, dizia Alberto Morávia. E a dificuldade específica da relação entre dever de informar e direito a ser informado acentuou-se, quando o jornalismo entrou no capítulo da mais-valia, aliás um axioma marxista.

Não esqueçamos de que isto anda tudo ligado – e que a discussão foi substituída pela frivolidade e pela indiferença. O País é isto.

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