Opinião
Ignorância e iliteracia militantes
Tudo o que é gente de bem em Portugal, sobretudo depois do século XVIII, reflectiu sobre o problema da educação, adiantando hipóteses e soluções, umas mais arrojadas do que outras.
Alguns dos mitos canónicos da nossa cultura foram objecto de revisões, ocasionalmente cáusticas, quase todas contestando os juízos tradicionais.
Como a cultura é (devia ser) uma disciplina da política, e a política um dos interesses da cultura, as esferas de ambos os conhecimentos deviam rechaçar qualquer dogmatismo e recusar construções enganosas. Luís António Verney [1713-1792] foi um desses portugueses proeminentes, que tentaram escancarar as portas da modernidade e sacudir o torpor e o obscurantismo que a Igreja instalara no nosso país. Verney é o iniciador do processo de reforma pedagógica e um incansável propugnador das ideias do Iluminismo. Ferozmente perseguido, incompreendido e injuriado, acossado pela sua heterodoxia mandou Portugal às malvas e instalou-se em Roma, até ao remate dos dias.
O testemunho passou de mão em mão. Todas as gerações têm procriado homens e mulheres preocupados com as caracterizações frívolas que impedem o desenvolvimento mental do País. António Sérgio [1883-1969] foi outro dessa estirpe. E até agora, porventura, aquele cuja obra ensaística está marcada por uma mais acentuada relação entre política, ideologia e cultura. E não seria nada mau se revisitássemos António José Saraiva [1917-1993], cujo empreendimento intelectual constituiu uma persistente batalha a favor da educação cultural e da cultura educacional, logo desde o seu primeiro trabalho, "Estética dos Autos de Devoção" [1937]. Saraiva criticou António Sérgio sem nunca deixar de o admirar e considerar, sendo, aliás, um continuador do "patriotismo prospectivo" do mestre dos "Ensaios". É um dos mais estimulantes pensadores portugueses, lamentavelmente pouco enunciado na Imprensa, e menos lido por quem o devia frequentar com curiosidade e alvoroço.
A lista é substancial. O que, hoje, se coloca com mais insistência é a necessidade de se reconstruir uma política educativa, no meio das ruínas, dos desequilíbrios, dos grandes interesses e das ininterruptas tensões económicas - e que constitua o reconhecimento das urgências e das necessidades do nosso tempo.
A proliferação de "universidades" privadas, o aparecimento de uma série alarmante de "cursos", eis algumas das ambiguidades até agora não esclarecidas, e que serviram, em muitos casos, para o rápido enriquecimento dos seus "promotores". Não se estabeleceram contratos culturais entre o Estado e os "privados", e a incerteza da identidade de muitos "cursos" têm sido factores conflituais que engendram angústia, desespero e perplexidade. Propinas caríssimas, deficiência pedagógica, saídas profissionais inexistentes devido a licenciaturas falaciosas que apenas conduzem ao desemprego. Está ausente o equilíbrio entre argumento e necessidade. O desprezo pelos educandos associa-se à ganância do lucro. Os negócios colaterais a essas "universidades" carecem de investigação criminal. É um caso de polícia e um caso de política.
Durante a última Feira do Livro, o meu velho amigo Guilherme Valente, editor da Gradiva, ofereceu-me o belíssimo "Eduquês", de Nuno Crato, no qual se propunham importantes alterações e se ofereciam numerosas ideias acerca do ensino em Portugal. Um livro excelente, por audacioso, muito bem escrito e muito bem pensado, que obteve várias edições, apesar do silêncio da quase generalidade da melancólica e ignorante Imprensa cá do brejo. A recuperação da mnemónica, uma das disciplinas da retórica, no ensino antigo, seria a representação moderna de "memorização", e era um dos alvitres de Nuno Crato. Creio que nem Nuno Crato nem Guilherme Valente foram ouvidos por quem nos governa. No entanto, qualquer destes dois homens tem consagrado a parte mais estelar das suas vidas à divulgação das ciências, e ao ensino em geral. Tanto um como outro insistem, porém, na questão central: o processo interventivo no ensino tem de mobilizar a sociedade no seu todo.
Como - conhecido o elevado grau de iliteracia da população portuguesa? Sem colocar de lado escritores, jornalistas, professores, políticos, agentes "culturais" que escrevem e dizem num português de eguariço. Numa espécie de inquérito, organizado, claro!, por Nuno Crato, a Gradiva vai lançar, em Outubro, colaborando com a Sociedade Portuguesa de Matemática, "Desastre no Ensino da Matemática: Como Recuperar o Tempo Perdido". Eles não desistem. Mas os sucessivos governos, averiguadamente mais propensos a outros apelos, continuarão, certamente, a ignorar que há "uma elevada percentagem de professores sem qualificações apropriadas", que há poucos alunos e os melhores nem sequer são muito bons, que há quem escreva samarra com cê cedilhado e polícia com u aberto.
E que tal uma vulgar sabatina aos ardorosos componentes do luzido sinédrio Compromisso Portugal? E à ilustração dos nossos "empresários" mais famosos? Socialmente, Portugal está de rastos. Economicamente, é um desastre. Culturalmente, dá vontade de chorar. Moralmente, não existe. Politicamente, é uma troca de favores. Que se pode fazer com isto?
Um caso penoso: todos os anos saem de "instituições universitárias" mil e quinhentos "licenciados" em Comunicação Social, sinistra expressão que nada significa porque nada de consistente possui. E alguns dos "professores" desse instrutivo "curso" são representantes típicos da mais pungente ignorância. Dir-se-á: mas há excepções. Direi: contam-se pelos dedos de uma só mão. Alimentam sonhos e esperanças concentrados no coração de milhares de jovens e, depois, impiedosa e levianamente, lançam-nos para o desemprego.
APOSTILA 1 - Aludi, levemente, mais acima, ao Compromisso Portugal. Levemente. Como se verificou, nada de novo ali foi dito, apesar de alguns trompetistas terem tocado segundo a pauta da vulgaridade. Há pessoas que deviam ler mais, estudar mais, analisar mais e reflectir mais para obterem a autoridade intelectual e moral exigível a quem escreve em público. O coro das críticas, algumas expressivamente violentas, não chegou para estabelecer o contraponto à desmesura, à bajulação e ao acriticismo conferidos a um acontecimento decididamente pouco importante, por uma Imprensa cada vez mais inócua.
APOSTILA 2 - A Câmara Municipal de Lisboa manifesta um evidente desinteresse pela Biblioteca-Museu da República e da Resistência, criada há treze anos, e dirigida pelo dr. João Mário Mascarenhas com uma proficiência que ultrapassa os limites das suas específicas funções. Carmona Rodrigues parece disposto a dificultar as actividades daquela instituição, através da não atribuição de verbas e do pouco (ou nenhum) estímulo às acções previstas. Por exemplo: quais os motivos soberanos que levaram à exclusão do programa comemorativo do primeiro centenário da República?