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23 de Maio de 2006 às 13:59

Estilhaços de memória

Sentada no areal de pernas cruzadas, confortável como só uma mulher pode, Valérie esgravatava o areal à sua volta. Há horas que a via naqueles enleios, na baixa mar de Port Edward, antiga zululândia sul-africana.

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De repente desenhou um sorriso de menina na cara enrugada pela soma de uns setentas e tais anos, onde se tornou, aos poucos, uma autoridade mundial em porcelana Ming.

«António! Venha cá ver esta! – gritou-me ela por cima do barafustar da rebentação, nos rochedos próximos. E eu fui, naturalmente obediente, ao meu próprio fascínio por aquelas coisas, que ligavam o Mundo dela ao meu. Ao nosso. Português.

O «esta» era mais um pedaço de porcelana Ming que há algum tempo vêem dando à costa, naqueles azimutes. Destroços já identificados como tendo pertencido ao galeão São João, cujo drama abre a «História Trágico-Marítima portuguesa».

Valérie estende-me a palma da mão aberta, oferecendo-me aquela ponte para o nosso imaginário colectivo. É apenas um pedaço de porcelana, com umas «chinesises» garatujadas em tons de azul. É verdade. Um bocado de loiça partida, dirão alguns.

Mas, para mim e para ela, sentados naquele areal, basta fechar os olhos para recuarmos 454 anos (!!) e «testemunhar» a tragédia que se abateu sobre o que se diz ter sido «o maior barco do seu tempo».

O galeão deveria ter largado de Cochim em Dezembro, para dobrar, em tempo propício, o extremo sul de África. Garantir que este seria um Cabo da Esperança e não das Tormentas.

Mas a ganância de carregar ao máximo o São João, com a então preciosa pimenta, e os já então proverbiais cortes, na manutenção do navio, deram as mãos na receita do desastre.

O galeão far-se-ia ao mar apenas a 3 de Fevereiro, sob o comando de Manuel de Sousa Sepúlveda. O drama que se seguiu parece saído da imaginação do guionista mais talentoso e inspirado de Hollywood. Já agora, se nunca leu a «História Trágico-Marítima» não lhe facilito a vida: pegue na obra e mingue um pouco a sua ignorância. Uma coisa lhe garanto; vale bem a pena.

Mas não desespere. Esta coluna não é escrita em estilo carangueijo, às arrecuas. É do presente para a frente que se configura o respectivo sumo.

Mesmo que tenhamos, por momentos, recuado a 1552 para ganhar balanço.

Valérie deslumbra-se há anos a pesquisar e guardar em caixas de cartão os pedaços de memória que estão a dar à costa da nossa indiferença e com esta última se espanta. Mesmo para quem, como ela, já há muito viaja na sabedoria dos «entas», tão estranho é o lusitano ignorar, alheamento ou divórcio de tal tesouro.

«Sobreviventes do São João foram os primeiros colonos europeus, ainda que involuntariamente, na costa Indica africana... e depois o drama vivido por centenas deles, que viajaram a pé, em direcção a Moçambique, para ali apanharem um barco de regresso a Portugal...» – as palavras somem-se da boca da investigadora sul-africana, como se já não fossem precisas.

E não o são. Pelo menos para mim, que – sem o dar por isso – já tinha largado as minhas próprias amarras físicas e desaparecido, mato adentro, na esteira daqueles homens e mulheres, que durante meses percorreram a pé mais de mil quilómetros. Morrendo de doenças, fraqueza e ataques; de animais e humanos.

E eu recordo da História, aprendida na escola, a imagem de Dona Leonor, a enterrar-se no areal, para esconder a nudez do corpo, após os indígenas a terem despojado de roupas.

A fidalga abraçando os meninos antes de morrer, certamente desidratada, para desvario de Manuel de Sousa que se embrenhou na floresta luxuriante e dali nunca mais regressou.

Sentados, no areal, escavando os estilhaços da nossa memória, tudo isto parece irreal. Os destroços que «regressam» pavimentando esta ponte entre dois mundos. E a indiferença pública. Dos media e dos governos.

«O bem mais precioso de Portugal é a sua história. Jóias como esta, deveriam ser acarinhadas por toda a gente», comentar-me-ia um empresário de Port Edward, que já começou a investir na preservação dos destroços do São João.

«O Turismo histórico é, certamente, uma das indústrias com maior futuro no Mundo» – prosseguiu. »Pode ser que Portugal acorde, um dia, para essa realidade. É como termos em casa um quadro precioso, transmitido de geração em geração.

«Faz tanto parte de nós, do nosso horizonte, que já nem o vemos ou pouco valor lhe damos».

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