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Opinião
27 de Setembro de 2006 às 13:59

Erros na política externa dos americanos

É fácil criticar uma potência que tem uma rede de relações internacional muito vasta. Quem faz muito é natural que cometa muitos erros. Por isso me parece que os que constantemente criticam os Estados Unidos padecem de três vícios: ...

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Por isso me parece que os que constantemente criticam os Estados Unidos padecem de três vícios: sentem-se dominados ao ponto de se concentrarem demais no dominante, têm mentalidade de servo, portanto criticam sem procurar alternativa, e perdem a noção de proporção. Quem muito faz muito erra.

É verdade. Mas isso não significa que a política americana não seja susceptível de crítica. Só que uma crítica equilibrada só pode ser feita visto o longo prazo, e não eventos anedóticos. Que uma potência queira usar o seu poder é o que de mais natural existe. Que seja criticada só por isso é presunção de escravo.

Ponhamo-nos pois sob o olhar do longo prazo e vejamos que criticas podem ser feitas aos Estados Unidos. Parece-me que sobram duas essenciais: apoiam os futuros inimigos e recusam aliados sinceros. Para isso contribuem dois factores: é um país generoso mas plebeu. O plebeu sempre teve dificuldade em ter reais aliados, porque lhe falta a noção de duração longa. Quando é maquiavélico é apenas por instinto e não por arte.

Vejamos então os dois pecados capitais dos americanos em política externa. Os americanos sempre tiveram a tendência obstinada de apoiar os seus futuros inimigos e concorrentes.

Começaram com a União Soviética. Não apoiam De Gaulle por temerem que fosse um ditador, mas sim Pétain e a URSS. Nos momentos de aflição real como a crise dos mísseis de Cuba, mais depressa foi De Gaulle seu aliado que o Reino Unido. E a URSS tornou-se na Guerra Fria o seu principal inimigo.

Para enfraquecer a URSS apoiam a China, ajudam-na a abrir-se ao mercado, ao mundo. Têm agora na China o concorrente que mais temem. Em boa verdade o que mais temem nas possibilidades é a Europa, mas desprezam-na por entenderem ter fracas probabilidades de se unificar.

Finalmente o principal apoiante dos fundamentalismos islâmicos foram os Estados Unidos. Apoiaram o Paquistão e não a Índia, quando a Índia seria um aliado leal e não submisso. E eis que o povo paquistanês é fundamentalista.

Apoiaram os talibãs (Bin Laden foi uma criatura da CIA) e vê-se o resultado.

Apoiaram a Arábia Saudita e não a Síria, quando a Síria é dos dois únicos países tradicionalmente laicos no Médio e Próximo Oriente (juntamente com o Iraque e de certa forma o Líbano). E é bem sabido que a Arábia Saudita financia o fundamentalismo árabe.

Apoiaram movimentos fundamentalistas na Europa, como os irmãos muçulmanos e são estes que agora são os seus principais opositores.

Apoiam a adesão da Turquia à União Europeia quando qualquer pessoa bem informada sabe que a Turquia não é um país laico, mas cesaropapista e centro de financiamento do fundamentalismo na Ásia Central, Balcãs e Cáucaso. E eis que a população e a elites turcas são das mais anti-americanas do mundo. E que alguns pensadores republicanos começam (finalmente) a perceber os erros desse apoio.

Que aliados substanciais poderiam ter os Estados Unidos? A Europa, a Índia, a América Latina, a África Negra, e o Japão. Em todos os casos culturas de matrizes europeias, um de matriz indo-europeia (a Índia) e outra francamente europeizada na sua cultura material, política e social desde há quase dois séculos. Aliados não significa submissos. Significa no essencial, na hora da verdade, estar junto. E discordar quando os interesses divergem. E no entanto, o que vemos que é que os Estados Unidos alienam completamente as populações suas aliadas.

Temos de compreender as razões deste descalabro.

Aos americanos falta profundidade histórica. Os árabes, quando conquistaram grossas fatias dos impérios bizantino e persa tiveram de se apoiar nos mazdeístas, mas sobretudo nos cristãos. Muito mais civilizados, muito mais aptos a gerir uma complexa máquina administrativa e social que um império constitui. Não é por caso que São João Damasceno foi o principal adjuvante do califa. Aprenderam a cultura cristã e persa e mantiveram em pé as suas estruturas por se saberem incapazes de gerir um império de muita fresca data.

Quando a Europa governava sozinha o mundo, fê-lo já como a civilização mais profunda e diversa, riquíssima de História, assente nas suas próprias raízes. E em concorrência. França, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Rússia além das potências médias como a Itália, a Bélgica, a Holanda, a Espanha estavam em concorrência entre si. É evidente que também a Europa sustentou e alimentou demónios que se viraram contra ela. Turcos contra outros europeus e persas, árabes contra turcos, judeus contra árabes, tribos africanos contra outras, e assim por diante. Mas quando o fez o desnível civilizacional em relação ao resto do mundo, e a segregação continental reduziam os efeitos na Europa. Não caíam bombas islâmicas na Londres do século XIX. O problema dos Estados Unidos é o de não terem criado paradigmas próprios de gestão civilizacional, limitando-se a copiar técnicas europeias e adaptando-as insuficientemente ao jogo de forças da contemporaneidade.

Os Estados Unidos lançaram-se no poderio mundial com inimigos, isolados e submissos. Sem aliados. Inimigos, os soviéticos, isolados os chineses e indianos, e submissos de três tipos. Submissos contratuais, os europeus, submissos de vizinhança, a América Latina, submissos por direito de conquista ou interesses sectoriais os países da África, árabes, a Turquia, o Paquistão. Em boa verdade os americanos lançam-se na política internacional sem conhecerem aliados. Ou seja, quem está connosco na hora da verdade, mas pode a qualquer momento recusar qualquer decisão do aliado. Podia no século XIX a Rússia fazê-lo em relação à Inglaterra ou à França ou vice-versa.

Em suma, os americanos entram na política internacional desconhecendo regras de convívio. Desconhecem as contrariedades de ter aliados. Aliados que o sejam. Por isso quando se vê sozinha como superpotência a América fica obcecada com a concorrência. Da China, da Índia e da Europa. Em vez de procurar alianças tenta solidificar submissões... e financiar futuros inimigos.

A obsessão americana no século XXI é o poderio chinês. Fará tudo para o destruir. O consulado de Bush filho começou com o episódio do avião espião americano na China. Tendo percebido que não poderia enfrentar directamente a China, lança uma guerra no Iraque que, como bem disse o bispo católico de Bagdad, é uma guerra no Iraque, mas não contra o Iraque, e sim contra a Europa e contra a China. Como disse o presidente Bush ao ministro de negócios estrangeiros turco em 2003: "A Europa? que interessa a Europa? Já a parti em três" (desconheço qual seja a terceira parte). Por isso quer dissolver a Europa colocando a Turquia no seio da União Europeia. Mas este é um erro que pagarão a longo prazo. Porque ainda não perceberam que é melhor para eles um mundo em que o número um seja a Europa e eles número 2 que um mundo em que seja a China o número um e a Europa apenas número três. É preferível que o nosso principal concorrente participe da mesma civilização pelo menos em parte, que seja totalmente alheio. Será um aliado difícil, mas na hora da verdade sê-lo-á. Por isso me parece que mais uma vez os americanos, ao apoiarem a Turquia estão a apoiar um dos seus principais inimigos e que sê-lo-á cada vez mais no futuro.

Aos erros de substância soma-se hoje em dia um erro de estilo. Terceiro erro: passaram de potência agrícola a industrial depois financeira e agora sobretudo política e militar. Deixam por isso de ser conservadores para passarem a ser revolucionários. Pela primeira vez na História vamos ter um povo que financia futuros inimigos, recusa alianças substantivas e tem ao mesmo tempo uma política externa revolucionária. Exemplo típico o de Bush que antes da guerra diz que não iria fazer "nation building" no Iraque e depois dela disse que afinal a guerra era para instalar a democracia (há mais "nation building" que isto?).

A mistura é explosiva. Como europeu apenas posso desejar que a Europa seja suficientemente forte para ser independente, soberana, que faça aliados e tenha uma política respeitadora da sedimentação histórica. Já vimos os resultados desastrosos da engenharia histórica. E ou a Europa se torna o que a sua sedimentação exige, ou seja, uma superpotência, ou cairá em protectorado, não apenas americano, mas um dia chinês, e sob um mar turcófono.

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