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Em terra de cegos, quem tem um olho é rei…

Numa conjuntura conturbada, nos mercados, nas decisões de política económica e na mente dos investidores

Numa conjuntura conturbada, nos mercados, nas decisões de política económica e na mente dos investidores, não é demais publicitar alguns desenvolvimentos positivos na economia portuguesa, para focar atenções, centrar esforços e granjear confiança.

A reacção intempestiva dos mercados a um conjunto de eventos relativamente conhecidos e a violência de confrontos sociais noutros países europeus contribuíram para o retorno de preocupações com a robustez da retoma económica mundial e, por essa via, do motor de crescimento da economia portuguesa previsto para os próximos anos. Na próxima semana, será divulgada a evolução do PIB e do emprego em Portugal no segundo trimestre, estatísticas que se espera denotem novo agravamento (quando ajustadas sazonalmente). A redução da taxa de inflação que ocorreu em Julho, de 3,4% para 3,2%, deverá ser revertida nos próximos meses, com a actualização expressiva de alguns "preços administrados". No meio desta adversidade de números, nem tudo é desfavorável a Portugal. Cabe por isso fazer alguma publicidade em prol próprio, a desenvolvimentos e factores de risco que poderão, apesar de tudo, exercer um efeito positivo sobre o processo de ajustamento da economia portuguesa.

A reacção dos mercados à revisão do "rating" dos EUA resultou excessiva face ao esperado. Não constituiu uma novidade nem deveria representar grande óbice para os mercados, na medida em que, do ponto de vista estritamente técnico, a dívida pública norte-americana conserva as características que detinha anteriormente. Terá sido determinante o impacto psicológico do fim de uma referência de par com a percepção de uma resposta de política económica que avança por tentativa e erro, símbolos do contexto de mudança de paradigma que estamos a percorrer.

Apesar de tudo, deste infortúnio poderão decorrer alguns efeitos colaterais positivos para Portugal. Primeiro, porque constitui mais um episódio da sensibilidade extrema dos investidores às notações de "rating" e, portanto, é um estímulo adicional para a existência de mecanismos alternativos de avaliação de risco de crédito nomeadamente por parte dos bancos centrais e que poderiam beneficiar a estabilidade e financiamento em mercado interbancário. Segundo, porque releva as oportunidades de investimento de melhor "rating" que existem no mercado, designadamente as emissões do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com repercussão directa no custo de financiamento dos países que dele beneficiam como é o caso de Portugal. Por último, porque a "nova" percepção dos investidores relativamente ao "rating" de um grande emitente de dívida, como os EUA, poderá de forma marginal ter uma repercussão positiva em títulos de dívida classificados como de risco de crédito superior, como a dívida pública portuguesa, se forçar a uma revisão dos critérios de investimento dada a exiguidade das oportunidades para a aplicação de fundos.

A deterioração do clima de confiança e o aumento dos riscos de contágio a outros países tem pressionado à adopção de novas medidas de suporte às economias. Apesar do cepticismo com que os investidores brindaram as decisões da cimeira europeia de Julho, o acordado é inequivocamente favorável a Portugal. Reduz os encargos com a dívida de forma significativa, nos juros e nos prazos de reembolso, potenciando a estabilidade da dívida pública a prazo, e condiciona a aplicação dos programas de ajuda económica e financeira ao retorno da autonomia de financiamento do país nos mercados internacionais. Do lado do Banco Central Europeu, procedeu-se à revisão e ao reforço do programa de aquisição de dívida pública em mercado secundário (mesmo que de forma temporária) e eventualmente, à semelhança do que outros bancos centrais já anunciaram, o ciclo de normalização das taxas de juro também poderá ser reavaliado, conforme implícito nas cotações dos mercados a prazo. Portanto, notícias mais propícias em termos do custo de financiamento da economia portuguesa, em termos públicos e privados.

Apesar dos números desfavoráveis esperados para o segundo trimestre, também existem alguns desenvolvimentos favoráveis para a economia portuguesa. Ter-se-á acentuado a tendência recessiva da actividade económica no segundo trimestre por retracção da procura interna, nomeadamente do consumo privado, e assim deverá continuar tendo em conta o embate significativo no rendimento real disponível das famílias previsto para os próximos meses. Mas, esta contracção da actividade será parcialmente compensada pelo contributo da procura externa, cujos desenvolvimentos recentes se revelam muito favoráveis (aumento nominal das exportações de bens em cerca de 17% e das importações de apenas 2% no segundo trimestre face ao trimestre homólogo e indícios recorrentes de recuperação das receitas de turismo). Não é uma evolução que decorra exclusivamente de efeitos contabilísticos extraordinários, como a aquisição de equipamento militar de há um ano e que distorce comparações do lado das importações, na medida em que as melhorias são relativamente disseminadas nas várias categorias de bens transaccionados, ocorreram numa base sequencial ao longo do primeiro semestre e num contexto de persistência de preços de energia historicamente elevados. Continuando neste ritmo, a redução das necessidades de financiamento da economia portuguesa, objectivo último do programa de ajustamento em curso, poderia surpreender positivamente não fosse a ameaça de um arrefecimento mais pronunciado da economia global. Não obstante, constituirá decerto uma nota positiva na avaliação que a missão UE/FMI fará dos progressos da economia portuguesa nestes primeiros meses de aplicação do programa de ajustamento e, tendo em conta algumas propostas recentemente avançadas no âmbito da governação europeia, de relevância crescente. Uma outra nota positiva decorre da reacção positiva dos agentes económicos, da classe política e da população em geral aos desafios colocados pela conjuntura actual, valorizada adicionalmente à luz do que procede de outros países. Este factor diferencia-nos, e num mercado globalizado os factores de diferenciação são cruciais.

Os desenvolvimentos atrás enumerados serão marginais num quadro de instabilidade invulgar mas eventualmente justificam a originalidade da contracção dos prémios de risco da economia portuguesa dos últimos dias e que tão fraca publicidade teve nos meios internacionais e decerto sempre terão um pouco mais de fundamento do que alguns dos rumores a que os mercados têm sido tão atreitos.



Gabinete de Estudos do Millennium BCP
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