Opinião
Da ignorância e da insensatez
O desejo de vida nova, cuja irredutível necessidade me parece comum à esmagadora maioria dos portugueses, encontra escasso eco nas assim chamadas elites.
Embora não saiba muito bem o que sejam as elites indígenas, uso o termo para facilitar o discurso. Diz Mário Soares que a pecha está instalada por toda a Europa. É capaz de ser verdade, tendo em conta a senhora Merkel, cuja cabeça risca o diamante; o distinto Berluscoli, mentecapto monumental; e Sarkozy, que está a deixar a França de pantanas. Adicione-se a este panorama alienado a traição dos "intelectuais", comprometidos com o silêncio da conivência.
Depois, quem recalcitra é apontado à execração popular como estalinista, chavista, fidelista ou por aí fora. Os meus Dilectos sabem que eu sei muito bem do que falo. Nunca ocultei (nem tenho de ocultar) que pertenço à grande família da Esquerda não-alinhada e, em tempos ominosos, fiz o que era necessário fazer. E voltaria a fazê-lo. Recuso e recusei medalhas de mérito e divirto-me um pouco, mas melancolicamente, quando assisto ao deprimente espectáculo do 10 de Junho, com o Presidente que há a proceder à distribuição, absolutamente aleatória, mas, amiúde, repugnante de condecorações a muitos que estão longe de as merecer.
Enquanto outros são miseravelmente esquecidos porque não pertencem à pandilha.
Poucas coisas de leitura e cinema atraem a minha curiosidade. Vou-me aos clássicos, remanejo velhos textos que animaram a minha juventude, procuro encontrar respostas, e, às vezes, encontro-as. Os tempos que vivemos não são propícios às exultações. Quem manda não sabe mandar e quem obedece parece fazê-lo por borreguismo. Há dias, na releitura de Fialho d'Almeida, surgiu-me esta, merecedora de ser recuperada:
"Para o advento de uma pura democracia social devem as fronteiras intelectuais cair antes das outras. E não é coisa de obter por decretos ministeriais e propagandas negativas, mas por um forte espírito de organização que bata em brecha os redutos da ignorância, e por agrupamentos de esforços que condensem a acção num sentido completo e integralmente educador. Somos todos responsáveis. Devemo-nos todos a esse esforço titânico de formar o povo. Entre as obras sociais que solicitam o nosso cuidado, nenhuma imperiosa como a instrução e a educação da massa bruta."
É um texto relevante, inserto no volume "Saibam Quantos…", que o jornalista e escritor escreveu logo após a implantação da República. O livro, aliás, constitui uma acerba crítica ao novo regime. Fialho [1857-1911] era um prosador temível, que merecia ser visitado ou revisitado. Há anos, entrevistado por um semanário, agora dado ao escândalo e à pequena mentira, recomendei à jornalista a leitura do autor de "Os Gatos." A surpresa manifestada pela rapariga deixou-me levemente perplexo. Perplexidade que aumentou quando percebi, anos depois, que a sua ignorância se transformara em irreplicável soberba. Paz à sua alma!
Procedendo a uma abstracção quase impossível, verificaremos que, na essência, as coisas pouco se alteraram. Ou, até, pioraram, com perdão da palavra. Ouvimo-los nas televisões, tentamos ler as escorrências a que chamam artigos, reportagens, crónicas, assistimos aos "debates" dos políticos, e apetece, às pessoas de bem, fugir a sete pés. Mas para aonde?
Entrou-se, declarada e abertamente, nos domínios do privado, da vida íntima, com responsabilidades directas de ambos os intervenientes, jornalistas e entrevistados. As revistas do género atingem tiragens elevadíssimas. Também leio algumas. O texto é tão mau que arrepia.
Um dia, um repórter de uma revista mexicana do tipo, perguntou ao grande poeta Octavio Paz sobre a sua vida sexual. Um pouco embaraçado, ele respondeu: "A erecção é um pensamento; e eu continuo a pensar." Também por aqui, há anos, um jornalista do "Tal & Qual" inquiriu um conhecido político nos seguintes termos: "Você é homossexual?" Talvez este tipo de jornalismo tenha a ver com a "modernidade"; mas não deixa de configurar a expressão mais nojenta e desprezível de certa Imprensa.
Felizmente que o jornalismo deste tipo parece não encontrar terreno fértil à sua frutificação. Porém, a pressão da actualidade, o carácter frequentemente ofensivo de antagonistas políticos em debates, o estilo sarrafeiro de alguns cavalheiros que se presumem donos de todas as verdades, os ajustes de contas com profissionais de Imprensa e entre eles mesmos - fornecem um espectáculo de desassossego e de insegurança, mas, sobretudo, de ignorância e de insensatez.
b.bastos@netcabo.pt
Depois, quem recalcitra é apontado à execração popular como estalinista, chavista, fidelista ou por aí fora. Os meus Dilectos sabem que eu sei muito bem do que falo. Nunca ocultei (nem tenho de ocultar) que pertenço à grande família da Esquerda não-alinhada e, em tempos ominosos, fiz o que era necessário fazer. E voltaria a fazê-lo. Recuso e recusei medalhas de mérito e divirto-me um pouco, mas melancolicamente, quando assisto ao deprimente espectáculo do 10 de Junho, com o Presidente que há a proceder à distribuição, absolutamente aleatória, mas, amiúde, repugnante de condecorações a muitos que estão longe de as merecer.
Enquanto outros são miseravelmente esquecidos porque não pertencem à pandilha.
"Para o advento de uma pura democracia social devem as fronteiras intelectuais cair antes das outras. E não é coisa de obter por decretos ministeriais e propagandas negativas, mas por um forte espírito de organização que bata em brecha os redutos da ignorância, e por agrupamentos de esforços que condensem a acção num sentido completo e integralmente educador. Somos todos responsáveis. Devemo-nos todos a esse esforço titânico de formar o povo. Entre as obras sociais que solicitam o nosso cuidado, nenhuma imperiosa como a instrução e a educação da massa bruta."
É um texto relevante, inserto no volume "Saibam Quantos…", que o jornalista e escritor escreveu logo após a implantação da República. O livro, aliás, constitui uma acerba crítica ao novo regime. Fialho [1857-1911] era um prosador temível, que merecia ser visitado ou revisitado. Há anos, entrevistado por um semanário, agora dado ao escândalo e à pequena mentira, recomendei à jornalista a leitura do autor de "Os Gatos." A surpresa manifestada pela rapariga deixou-me levemente perplexo. Perplexidade que aumentou quando percebi, anos depois, que a sua ignorância se transformara em irreplicável soberba. Paz à sua alma!
Procedendo a uma abstracção quase impossível, verificaremos que, na essência, as coisas pouco se alteraram. Ou, até, pioraram, com perdão da palavra. Ouvimo-los nas televisões, tentamos ler as escorrências a que chamam artigos, reportagens, crónicas, assistimos aos "debates" dos políticos, e apetece, às pessoas de bem, fugir a sete pés. Mas para aonde?
Entrou-se, declarada e abertamente, nos domínios do privado, da vida íntima, com responsabilidades directas de ambos os intervenientes, jornalistas e entrevistados. As revistas do género atingem tiragens elevadíssimas. Também leio algumas. O texto é tão mau que arrepia.
Um dia, um repórter de uma revista mexicana do tipo, perguntou ao grande poeta Octavio Paz sobre a sua vida sexual. Um pouco embaraçado, ele respondeu: "A erecção é um pensamento; e eu continuo a pensar." Também por aqui, há anos, um jornalista do "Tal & Qual" inquiriu um conhecido político nos seguintes termos: "Você é homossexual?" Talvez este tipo de jornalismo tenha a ver com a "modernidade"; mas não deixa de configurar a expressão mais nojenta e desprezível de certa Imprensa.
Felizmente que o jornalismo deste tipo parece não encontrar terreno fértil à sua frutificação. Porém, a pressão da actualidade, o carácter frequentemente ofensivo de antagonistas políticos em debates, o estilo sarrafeiro de alguns cavalheiros que se presumem donos de todas as verdades, os ajustes de contas com profissionais de Imprensa e entre eles mesmos - fornecem um espectáculo de desassossego e de insegurança, mas, sobretudo, de ignorância e de insensatez.
b.bastos@netcabo.pt
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