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Opinião
16 de Agosto de 2006 às 13:59

Complexos e desonestos

Num programa de televisão um interlocutor agnóstico, dos raros homens cultos que participam no espaço público, lembra a nossa matriz cristã como fundamental na nossa cultura europeia.

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Um outro interlocutor, apenas analfabeto, fixa bem o seu olhar e afirma, com ar de dogma ambulante: «as fontes são muito mais complexas». Tendo reparado que existia uma correspondência biunívoca entre o conjunto dos seus olhos e dos seus neurónios facilmente percebi que o ar agudo com que as coisas são ditas pode apenas reflectir a necessidade de estabelecer um bailado sincrónico entre os olhos e os neurónios.

Este episódio, irreleva se meramente ficcional ou não (seria tão má ficção como má realidade), é apesar de tudo significativo, tristemente significativo. Dizia-se antigamente que o «etc.» era o descanso dos sábios e o refúgio dos ignorantes. Os apóstolos do complexo estão no mesmo patamar.

Dizer que uma questão é complexa releva da mera banalidade. O difícil é triar as grandes linhas de força, e o difícil igualmente delimitar em que medida algo é complexo. Um e outro movimento são exercícios de complexidade. Apenas dizer que algo é complexo é apenas exercício de desonestidade intelectual.

O problema é que a praça pública se enche desta palavra, mais uma muleta justificadora da ausência de estudo e reflexão. Vejamos de onde vem.

Alexis de Tocqueville, um dos maiores teorizadores da democracia (com Montesquieu - dois aristocratas, por sinal, o que não é mera coincidência), dizia que uma das perversões da democracia era a sua tendência para a centralização e o seu horror da complexidade. A descentralização seria uma questão de arte e não de natureza na democracia. A história das difíceis descentralizações italiana e alemã (foram necessárias guerras para o efeito) ou francesa ou portuguesa (sem guerras e por isso mais lentas) mostra que só por arte, não por um movimento natural, a descentralização ocorre.

Da mesma forma, a complexidade é banida do espaço público. A ânsia de simplicidade, ou melhor de unificação, obedece a nobres motivos e tem belíssimos resultados na ciência, por exemplo. Mas a unificação, para quem conhece a História da ciência, resulta sempre de uma dura luta contra a complexidade. Quando Montesquieu «descobre» a ideia de separação de poderes e a sua tipificação faz obra de génio, mesmo que a sua análise seja incorrecta quanto ao paradigma inglês e que venha a ter resultados pouco benéficos em França ainda nos nossos dias (o fraco controlo judicial do poder político e legislativo, por exemplo).

Este horror à complexidade nada tem a ver com motivações de unificação da realidade, mas com vontade de impor à realidade um princípio único. É a inversão da postura que gera a perversão. Como de costume, por mais que isto custe aos bem-pensantes, as ideias fundamentais nasceram no âmbito religioso. A iconoclastia bizantina, o monofisismo oriental e mais tarde o protestantismo, a recusa do culto dos santos e o anti-trinitarismo são bons exemplos de recusa da complexidade. O homem contacta com Deus de forma directa, sem intercessões. O Céu deixa de estar povoado de múltiplos seres, santos, anjos, espíritos simples. A imagem é excluída, Cristo tem uma só natureza, a Santíssima Trindade é um absurdo. Todos estes movimentos tiveram a sua grandeza, em graus diversos, mas todos eles comungam de uma necessidade de conforto da razão humana. Da procura de um padrão simples de leitura, de instalação no mundo.

Ora quem afirma que algo é complexo sem mais apenas comunga da versão pervertida desta procura de unidade. De um lado aceita sem hesitação definições da Europa como democracia, economia de mercado, acquis communaitaire. O que é meramente funcional, condicional, para ele tem valor de dogma. Exactamente porque não é substantivo. Reconforta-o não haver substância. Por outro lado, quando alguém tem a coragem, e a sabedoria bastante, para estabelecer padrões simples na substância, recusa-os sem mais, liminarmente.

O que é afinal a complexidade para estes cavalheiros? É o lugar onde habita a substância. Para eles a substância deve ficar inominada, até porque se lhe perguntam directamente por ela, eles sentem-se obrigados a dizer que não existem substâncias. Vejamos o vício lógico: é complexidade, mas afinal é coisa nenhuma. O complexo, que habita em locação permanente as suas bocas, remete afinal para o nada. Ao dizerem que qualquer coisa é complexa, apenas reafirmam o seu horror da complexidade. Para eles é a mesma coisa que dizer: não existe, não se pode delimitar, não se pode falar nisso.

Brilhante armadilha lógica. Os mesmos que analisam com despudorada superficialidade a existência (»a Europa é democracia», «a Europa deve ser multicultural», etc.) são os mesmos que rapidamente nos atiram a complexidade. A complexidade não serve assim para abrir uma discussão, mas para a encerrar. Em vez de ser um começo é um termo, um encerramento. O complexo não é para eles uma abertura ao mundo, mas uma forma de encerrar o debate sobre ele. «A questão é mais complexa» é um diktat, mais uma entre muitas outras sentenças definitivas que lançam para o mundo.

O que o motiva a este tipo de atitude? Aqui entramos na psicologia do mastigador de complexidades. Quando apreciamos a sua cultura geral, verificamos quais são as suas fontes. Um ensino formal rotineiro mais ou menos bem digerido. Na História, para ele, vieram os gregos e morreram todos. Depois viram os romanos e morreram todos. Zenóbia para ele não tem significado e na melhor a das hipóteses a Grécia acaba com Alexandre. Depois de um ou dois estóicos o mundo helénico apaga-se para ele. Jâmblico, Porfírio e Plotino são nomes de que nunca ouviu falar. Na matemática lembra-se do teorema de Pitágoras - mal - ou então, se tem mais alguma formaçãozita, do teorema fundamental da trigonometria, na melhor das hipóteses de limites, séries, derivadas e anéis.

A sua concepção de cultura começa a ser formada na escola com a ideia de que há capítulos que se encerram, de uma vez por todas, para toda a vida. O que lhe exigiu estudo para ele são capítulos, matéria que vem para exame. A partir daí a sua concepção de mundo é a da mera abertura, formada pela leitura de ensaios, de jornais, revistas, e finalmente da Internet.

Deixou de estudar em sentido próprio, com método, com disciplina, em boa verdade porque para ele estudar sempre foi qualquer coisa que se tinha fundamentalmente de acabar. Para o exame, para o teste. O estudo para ele sempre foi uma corveia, e não lúdica actividade. O passeio turístico pela informação, esse sim, é a sua concepção de aprendizagem. E que ninguém o confronte com o que lhe falta, com as suas carências.

Nem todos os vícios lógicos têm uma explicação antropológica, salvo talvez os mais pobres. Os mais pobres são com efeito os que têm origem não nos limites da razão, mas na pobreza do seu utente. A criatura que invoca a complexidade apenas para encerrar a discussão mostra de uma só assentada vários aspectos do seu mundo. Ignora, não quer por isso que a sua ignorância seja posta a nu. Admite a discussão, mas apenas quando muito segundo as suas regras, por forma a que não possa ser nunca posto em causa na sua menoridade. Tirânico e anti-dialético na sua seiva, a pouca que tem, prefere encerrar discussões a abri-las. Ou seja encerra as discussões em que sabe que perderá sempre, aquelas em que é preciso ter cultura profunda, inteligência efectiva, e não apenas malabarismo de comunicação social. Maneja o sorriso ou o ar condenatório como esgares faciais que o defendem contra a exposição da sua mediocridade.

Em síntese, e mais uma vez, como o definir? Já vimos que tem horror a qualquer confronto com a substância, regozijando-se com definições meramente condicionais ou funcionais. Mais uma vez, e mais uma vez, a mediocridade confina sempre na autobiografia. Exige que o mundo seja feito à sua imagem e semelhança. Ou seja, funcional, operacional. Sem substância. Como ele.

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