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Opinião
06 de Julho de 2005 às 13:59

Como nos vêem os americanos?

Sob o ponto de vista político, os americanos ou nos ignoram, ou nos desprezam ou nos temem, mas esta última hipótese é residual. A maioria ignora-nos.

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Ao ver tanto tontinho ou mal intencionado (a alternativa é meramente retórica, entenda-se) a dizer que os americanos são os nossos principais aliados, quando eu não vi ainda fundos americanos para o desenvolvimento de Portugal ou outros países do Sul da Europa confesso-me que pasmo como ninguém lhes dá uma valente admoestação. Basta ver como o grande aliado que é Portugal é esquecido frequentemente de ser mencionado como tal pelos Estados Unidos. Quem gosta de ser sentir aliado deles está habituado a ser irrelevante e portanto reivindica esse papel como uma segunda natureza.

Mas deixemos os tontinhos e concentremo-nos nos americanos (qualquer leitor mais atento perceberá que hoje estou generoso e distingo os conceitos). Como nos vêem eles a nós europeus? Somos realmente seus aliados, é assim que nos vêem?

Para começar temos de reconhecer a que a maioria dos americanos não nos vê. Ou são demasiado analfabetos, centrados no seu próprio mundo, ou são pura e simplesmente originários de outras culturas. Os Estados Unidos, eles sim, são multiculturais, não a Europa. e por isso não podemos esperar que os americanos olhem para Europa tanto quanto o faziam em 1940.

Em segundo lugar é evidente que existem muitos olhares diferentes. De entre a elite cultural existe uma imensa admiração pela cultura europeia antiga, sem dúvida nenhuma. Mas não pela actual, e talvez sejam mais sensatos que os europeus neste aspecto. Por isso, os europeus que se alimentam de orgulho por os americanos admirarem profundamente a cultura europeia têm de ter consciência que aquilo que os americanos admiram é exactamente o contrário do que os europeus fazem hoje em dia e que é de poucos americanos que falam.

Sob o ponto de vista político, os americanos ou nos ignoram, ou nos desprezam ou nos temem, mas esta última hipótese é residual. A maioria ignora-nos. De entre as elites políticas desprezam-nos pelas nossas fraquezas, pela incapacidade que temos de fazer uma defesa e uma política comuns. Desprezam sobretudo os seus maiores apoiantes, os seus maiores acólitos, os que mais defendem os Estados Unidos. Os pobres coitados que se põem sempre incondicionalmente ao lado dos Estados Unidos não percebem que, como é banal na História, são os aliados pequenos e subservientes que são mais desprezados na História. Os romanos apoiam Herodes Agripa, tornam-no num romanizado, para o largarem mal ele deixa de lhe dar jeito. São meros instrumentos. Quanto alguém pouco poderoso quer ser aliado de outrem muito mais forte reduz-se a si mesmo à mera qualidade de instrumento, o que eu, num arroubo de mansuetude, reconheço ser justo. Pois são meros instrumentos.

Mas temem-nos politicamente. Temem a possibilidade, mas as pequenas probabilidades confortam-nos. Temem a possibilidade uma Europa forte, poderosa, quando querem uma Europa farta e próspera apenas, para ser sua boa cliente. Temem a possibilidade, mas os comportamentos dos políticos europeus, e não só ingleses, mas também alemães, italianos, portugueses e outros que vão aos Estados Unidos para voltarem com um afã de meterem a Turquia na Europa por ordem americana mostram-lhes que as probabilidades de a Europa se unir em força é diminuta. Há aliás um dado comum interessante: quando grandes aristocratas como o arquiduque Otão de Habsburgo ou Odön von Hörvath vão para os Estados Unidos sentem-se cada vez mais europeus. Quando são plebeus que estudam nos Estados Unidos vêm com a vontade de integrar a Turquia na Europa. Sempre que alguém tiver dúvidas sobre a classe de uma pessoa aconselho a que a remetam para os Estados Unidos. Se vier com vontade de enfiar asiáticos na Europa é plebeu de certeza absoluta.

O problema é o de saber se ainda hoje em dia os americanos nos olham como Europa. A resposta é simples: sim e não. Sim, porque a Europa é uma realidade inevitável, a região mais rica do mundo ainda hoje em dia. Um espaço organizado de meio bilião de pessoas mas que pode tender quase para o bilião de pessoas se juntarmos a Rússia e os países europeus que ainda não aderiram à União Europeia. Sim, porque a Europa é uma realidade de poder económico, comercial, financeiro e diplomático. Não, porque a Europa é ainda uma nulidade em defesa, poder militar e poder político duro. Mas não sobretudo porque cada vez mais os americanos vêem a Eurásia e não a Europa.

Desde há quarenta anos que os americanos oferecem à Turquia estatuto de membro da União Europeia. Esta não é uma política de um ou outro presidente norte-americano, mas uma política consistente com mais de quarenta anos. Faz-me lembrar a política inglesa em relação à Alemanha, que generosamente queria oferecer as colónias portuguesas para a apaziguar. Até com Hitler se tentou esta jogada. É sempre generoso oferecer prendas a custos dos outros.

Esta política que pretende dissolver a Europa num bloco eurasiático foi reforçada com a queda do Muro de Berlim. Os países da Ásia Central que antes faziam parte da União Soviética, turcófonos na sua maioria e com tradições «laicas» equivalentes à Turquia (a Turquia sempre seguiu os mesmos ciclos históricos que a Ásia Central, a que pertence culturalmente) foram atraídos pela Turquia e pelos Estados Unidos como forma de dissolver o poder da Rússia.

Na visão americana, apenas adocicada na expressão pelos democratas, mas em suma consensual nos meios estratégicos americanos, a função da Europa é a de ser uma potência regional, de estabilização e financiamento do Médio Oriente, e em geral de todo o espaço muçulmano que a circunda a Sul desde as Colunas de Hércules até à muralha da China. O negócio é simples e o habitual: os americanos determinam a política e alimentam os exércitos (é o que fazem na Turquia, Egipto, e assim por diante) mas é a Europa que tem o muito mais pesado encargo e menos compensador politicamente de financiar o desenvolvimento e a estabilização desses países. A política eurasiática consiste igualmente em transformar a Europa num espaço multicultural, em que a emigração maciça de todo esse flanco sul da Europa poderia ver aliviada a pressão demográfica pela exportação de grandes massas de populações para o continente europeu. O apoio expresso à adesão da Turquia na União Europeia, bem como o encorajamento da política turca que pretende a longo prazo introduzir na União Europeia os países turcófonos da Ásia Central, são sinais bem evidentes desta política. E em geral comparando os números vemos que os exércitos são obra dos americanos, mas os subsídios são europeus em todo o flanco sul da Europa.

As perguntas que há que fazer são as seguintes? Tem a Europa interesse nisto? Têm mesmo os americanos interesse nisto?

Que a Europa não tenha nenhum interesse nisto é por demais evidente. Na prática apenas se esgotaria a tentar estabilizar uma zona anómica, cada vez mais instável externa e internamente. Culturas diferentes que sempre divergiram mas que sobretudo não querem convergir (o senhor Erdogan lembrou expressamente que da Europa apenas quer a cultura política e o dinheiro obviamente - gostaria era de saber como pode existir uma identidade cultural meramente política - será que o Japão e a Europa se podem unificar?). O excesso de proximidade estraga a boa vizinhança, e os extremismos crescerão na Europa. Em traços muito simples - infelizmente os resultados são bem mais desastrosos que estes - é o que se pode dizer.

Mas há igualmente que perguntar se os americanos têm interesse a longo prazo nisto. A História tem demonstrado que os americanos são peritos em apoiar os seus futuros inimigos. A União Soviética, a Arábia Saudita e o Iraque estão aí para nos demonstrar. O seu apoio a uma política de asiatização da Europa cada vez mais reforçada nos últimos anos não lhes gera amigos na Ásia e gera cada vez mais inimizades na Europa. O que eles se têm de perguntar é se, em vez de arranjarem dois aliados em vez de um, não geram aproximações de povos apenas por um inimigo comum. Não que os países muçulmanos (árabes e turcófonos) se tenham aproximado nas suas culturas. Mas os últimos anos têm demonstrado que se têm aproximado no adversário comum, os Estados Unidos. A longo prazo, esta política pode significar para os Estados Unidos dois resultados alternativos, ambos péssimos: ou tem êxito e a Europa extrema-se, ou não tem e ficam os constrangimentos de se explicar a um hóspede indesejado porque não pode entrar. Seja como for, bem vindas as gerações futuras: elas pagarão os nossos erros.

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