Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
13 de Agosto de 2004 às 13:59

«Chuta pra canto» & «manda pró tecto»

Agosto é, por eleição, o mês da calma e da tranquilidade. Para quem se mantém na labuta, então, Agosto transforma-se, por eleição, no mês da quase-pasmaceira.

  • ...

I. Telefone pateticamente mudo, horas a fio. Trânsito anormalmente fluido. Lugar para estacionar. Ruas aprazíveis. Menos gente, fila de espera mais curta. Bom tempo. Nas urbes maiores, Agosto é, por eleição, o mês da calma e da tranquilidade. Para quem se mantém na labuta, então, Agosto transforma-se, por eleição, no mês da quase-pasmaceira. Para uns, é a oportunidade ideal para dar atenção séria àqueles assuntos fundamentais que, há meses ou anos, vêm hibernando na pasta dos projectos adiados. Para outros, é o complemento do merecido descanso estival, imediatamente antes ou logo após o período formal de férias. Em suma, é em Agosto que para muitos se reacende a paixão pela cidade.

Mas Agosto permite, também, perceber outras coisas. Por exemplo, o que vale, realmente, a propalada lusitana hospitalidade para com os turistas.

Foi há dias. Ponteiros já posicionados bem depois do meio-dia. Numa moderna esplanada na Foz do Douro, povoada de malta predominantemente jovem, vista ampla de mar, estrutura montada em pleno areal. Calor em dose mais que suficiente, aprazíveis guarda-sóis abertos. Música de batida rápida, já que, na óptica do concessionário do local, o ruído das ondas a bater na praia será tremendamente monótono...

Uma mesa acolhe um casal de turistas, acompanhado de dois miúdos. Louros, sardentos, visivelmente alagostados pelo sol do sul. O ambiente é «english speaking». Já sentados, o pai - identifiquemo-lo assim - eleva os olhos, que passam a procurar um empregado por perto. Debalde. Os dois ou três que assistem os clientes da esplanada, repleta, com umas 30 mesas, avistam-se longe. Os minutos passam. De repente, eis um que se aproxima. O pai estica e gira o pescoço, quase replicando o assistente a uma partida de ténis na primeira fila da bancada. O criado passa, em picado rasante, olhos estrategicamente posicionados, aí uns estudados e experientes sete centímetros acima do alcance visual do «estranja». Sim, porque já lá vai o tempo em que os estrangeiros é que eram os de primeira. Embora nós saibamos que, em rigor, todos os clientes são, agora, assim tratados.

Após umas três passagens no mesmo jeito rasante, o empregado detém-se perto da mesa, bandeja em precário equilíbrio repleta de copos sujos e garrafas vazias, detido pelo gesto impaciente do «bife», cujo pescoço manterá agora uma rotação de 135 graus de modo a, embora já de olhos acantonados, conseguir finalmente encarar quem, pela quinta ou sexta vez, se escapava.

Faz-se a encomenda. Bebidas frescas para todos. Rapazito dos seus 17 ou 18 anos, o empregado retornará à mesa - quando calhar -, bandeja periclitante agarrada pelas duas mãos. Garrafas e latas são despejadas na mesa, acompanhadas de copos de que escorre líquido, que se supõe ser um derivado da água. Antes que seja possível pedir-lhe algo que está em falta - talvez uns guardanapos -, já voltou costas. Terá mais uma dúzia de mesas a servir. No entretanto, um «talãozinho» caíra na mesa. O chefe de família, intrigado, segura o papelinho, e só mudará de feição assim que reencontrar o cúmplice sorriso de sua dama.

Exactamente! «That’s the bill!» Volta a pousar o papelinho na mesa, enquanto entorna o sumo enlatado, misturando-o com o líquido que escorre por dentro e por fora do copo. Entretanto, o rapazito da bandeja já está de novo especado junto à mesa. O turista inquire então o que é aquele papelinho. O rapazito «gestifala» como pode. É a conta, e o inglês teria que pagar já. O paciente inglês pede desculpa, e adianta que está ali para, dali a pouco, almoçar com a família. Parece, afinal, que aquelas bebidas só visavam repor o nível de água para aguentar o calor. Mas nada feito, tem que pagar, é assim mesmo.

Em mesa próxima, jornal semi-aberto reclamando a minha atenção, assisto a tudo, num sentimento misto de humor e vergonha. Mas, desta vez, o «bife» é de estirpe dura de roer. Agora, o inglês quer saber se, pela primeira vez na vida, em férias em Portugal, está a ser convidado a almoçar com pagamento em módicas e suaves prestações; a primeira pela bebida; a segunda pelo prato; a terceira pelos gelados que as crianças reclamarão; a última, provavelmente, pelo chá ou pelo café. A conversa chama a atenção das mesas próximas. O rapazito, tão vencido quanto arrasado, balbuciando um «ok» lá se escapule como pode para a cozinha. Afinal, cumpria a ordem que tem: bebida na mesa, massa no caixa!

Sim. No Porto, em Lisboa, por todo o Algarve. Num tasco, em restaurantes, em esplanadas «cosmopolitamente» decoradas por renomados arquitectos de gorda factura. Presta-se pouca ou nenhuma atenção ao mais importante: as pessoas, e a qualidade do serviço que se lhes presta. Chuta pra canto!

É por isso que o copo que escorre água, o prato bem dedilhado de marcas de gordura, o guardanapo que nem vem nem virá, a refeição paga a prestações, o estudante do secundário em férias que serve durante quinze dias à mesa à cata de uma notita diária de 10 euros para depois acampar na Ericeira com os amigos são, ainda, indissociáveis da imagem do nosso turismo. Exactamente, o turismo! O tal sector estratégico para o qual Portugal está bem talhado, pelas suas condições climáticas e paisagísticas.

 

II. Mas o «chuta pra canto», incluindo a variante do «manda pró tecto» é, também, peculiar, utilíssima e generalizadamente vulgarizada instituição da nossa Administração Pública, sob o epíteto do secular «veto de gaveta».

Tornou-se moda. As variantes são as mais diversas. Não responder às cartas, mas, ao invés, despachá-las, de preferência para quem as guarde bem e por bom tempo, mediante um «à consideração superior» ou «ao Secretariado Administrativo do Comissariado Técnico Adjunto de [fulano de tal], com o pedido de emissão de competente parecer, após ouvido o Alto Representante para os Assuntos do Comissariado Central». Não atender o telefone e instruir a secretária para responder, sempre, «o senhor doutor tem estado o dia todo em reunião» - as vezes que forem precisas, até que o interessado, vencido pelo cansaço, desista. Ou, mais modernamente, sempre que uma mensagem de correio electrónico não tiver gerado qualquer esperada resposta, mandar transmitir, no mais elegante e cortês dos modos, que «o nosso servidor de email tem estado em manutenção por razões de segurança»...

Pensando melhor, o «veto de gaveta» constitui mui expedita forma de se evitar que os problemas se acumulem. Aliás, para que os problemas não surjam, bastará, simplesmente, ignorá-los.

Os meus votos de boas férias a todos os leitores do Jornal de Negócios.

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio