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Cada um sabe onde lhe aperta o sapato

Desde meados de 2008 que se vem a processar a "desalavancagem" da economia portuguesa por iniciativa do sector privado.

Desde meados de 2008 que se vem a processar a "desalavancagem" da economia portuguesa por iniciativa do sector privado. Os valores agora conhecidos com as contas sectoriais do segundo trimestre revelam o início de uma nova fase, de correcção dos desequilíbrios das Administrações Públicas (APs) mas de dificuldades crescentes na sustentação da condição financeira do sector privado.

Há cerca de uma semana foi dedicada grande atenção às contas nacionais trimestrais do segundo trimestre. O interesse dirigiu-se maioritariamente às contas públicas. Percebe-se a preocupação. Porém, esta não se pode cingir às APs. O programa de ajustamento económico e financeiro em curso pretende, como objectivo último, instituir sustentabilidade financeira no país. Não é uma responsabilidade exclusiva do Estado mas de todos os sectores institucionais e da forma como a sociedade se organiza nesse propósito. Não é demais lembrar o exemplo japonês: uma dívida pública superior a 200% do PIB mas relativizada pela extraordinária folga financeira ostentada pelas famílias e empresas. Propõe-se uma breve nota sobre a evolução nas contas sectoriais portuguesas e os desafios que suscita.

Comecemos por uma simulação grosseira. No pressuposto de que as tendências verificadas na primeira metade do ano são válidas para o segundo semestre, estaríamos a caminho de necessidades de financiamento corrente para Portugal de 6,7% do PIB - coincide com boa parte dos cenários oficiais - que "tem de ser" financiado pelo sector não residente e que representa acumulação de dívida face ao exterior. Este défice corrente repartir-se-ia por necessidades líquidas de financiamento semelhantes entre as APs e as empresas, em redor de 7% do PIB, que seriam parcialmente compensadas pelos excedentes financeiros das famílias (cerca de 3% do PIB) e das instituições financeiras (cerca de 4% do PIB).

Esta evolução significaria, face ao ano de 2010, uma redução das necessidades de financiamento de Portugal em cerca de 1,5 p.p. do PIB decorrente de uma melhoria substantiva na condição financeira das APs (2,5 p.p.) e nas instituições financeiras (2,0 p.p.), por contrapartida de uma deterioração nas famílias (1,3 p.p) e nas empresas (1,7 p.p). Estas evoluções relativas denotam a transferência de recursos entre o sector público e o sector privado; um menor consumo público, variação que em parte deriva de aquisições extraordinárias de equipamento militar efectuadas no ano transacto (aprox. 0,5 p.p.); o reforço dos capitais das instituições financeiras por via da não distribuição de dividendos; o agravamento nas condições do negócio enfrentadas pelas empresas portuguesas; e a dificuldade das famílias em sustentar poupança.

Do lado das famílias destacam-se dois resultados: a quebra no rendimento disponível (cerca de 5% em termos reais) e a redução na taxa de poupança. Apesar da retracção no consumo, a taxa de poupança das famílias desceu, para valores na ordem de 7,5% em termos anualizados, cerca de 1 p.p. inferior aos valores de 2010. Tendo em conta que estes valores são relativos ao segundo trimestre e ainda não incorporam as principais alterações fiscais previstas para 2011 e que em 2012 estas tenderão a ser agravadas, dificilmente as famílias terão os meios para um incremento significativo da poupança e para o aumento da sua capacidade de financiamento institucional sem reflexos dramáticos no consumo e no investimento em habitação.

Do lado das empresas, ressalta a incapacidade de reduzir as necessidades financeiras pela acção conjunta de agravamento do contexto económico e das condições financeiras. Os indicadores sugerem o retorno em 2011 a uma queda dos resultados operativos semelhante ao verificado nos anos de 2008 e de 2009 (aprox. 5%). Os encargos com a propriedade aumentaram em 34% em termos homólogos, parte deste como rendimento das famílias outra parte como compensação pelo aumento do risco de crédito (a variação no excedente bruto de exploração é comum às sociedades não financeiras e financeiras). Nestas condições, para que a necessidade de financiamento das empresas retomasse os valores de 2010 o investimento teria de descer cerca de 30% em termos homólogos no segundo semestre deste ano. Colocaria a taxa de investimento num nível inferior a 8% do PIB em 2011 (em termos médios, a taxa de investimento situou-se em 13% do PIB desde 1999), um resultado contrário ao ímpeto reformista que se pretende para a economia portuguesa.

Deste pequeno exercício de simulações resulta o esforço implícito no ajustamento económico e financeiro português. O futuro poderá reservar algumas atenuantes, como a revisão das taxas de juro dos empréstimos a Portugal, dos juros do BCE ou do custo da energia (items que no seu conjunto poderiam representar uma poupança para o país em redor de 1 a 2 p.p. do PIB). Seria bom, mas insuficiente. Particularmente relevante é o condicionalismo imposto pelo desequilíbrio financeiro crónico no sector empresarial português. É uma característica típica dos países latino europeus e que acentua a fase recessiva do ciclo económico, pelo vício que institui entre a dimensão da dívida, a capacidade geradora de proveitos e o custo do risco - as empresas em Espanha estão a mudar, o sector já evidencia capacidade para se autofinanciar, e nos países do norte e centro europeus as empresas tendem a apresentar excedentes financeiros correntes.

Tendo em conta o contexto actual e prospectivo, romper com este ciclo vicioso implica maior determinação na defesa da geração de proveitos nas empresas, na parte da procura e dos custos sobre os quais tenhamos capacidade de decisão, e em medidas ou incentivos significativos para a recapitalização das empresas, que permitam atenuar os encargos com a dívida e potenciem a retoma do investimento.


Gabinete de Estudos do Millennium BCP
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