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Berlusconi anda por aí

As sociedades desenvolvidas podem conduzir à servidão e à barbárie. A ideia não é nova. Alexis de Tocqueville refere-se-lhe no clássico “De la Démocratie en Amérique”, mas os propagandistas da “sociedade aberta” omitem, acaso por ignorância ou má-fé, o ad

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A evidência de que a democracia como regime e o capitalismo como sistema estão em crise. O capitalismo costuma resolver os seus problemas, renascendo das cinzas aparentes com que apressados preopinantes o pretendem cobrir. A democracia, essa, é mais difícil de corrigir os erros que comete. Também estão em Tocqueville estas indicações, cada vez mais premonitórias. A época que vivemos sublinha-as.

O neoliberalismo já deu o que tinha a dar. Mas persiste, graças à sustentação leviana que se lhe presta O cortejo de misérias que atrás de si deixa é assustador. E não está feito o estudo comparativo do totalitarismo e da modernização. Pierre Bourdieu tentou, e deixou-nos textos admiráveis sobre as «evoluções involutivas» do universo orwelliano em que, alegremente, mergulhámos.

O “ponto cego” da democracia surge um pouco por toda a parte. E o capitalismo, quando não tem inimigos, inventa-os. Não vale a pena enumerar os desvios sociais e as verdadeiras aberrações criados pelo monstro, cuja domesticidade tem sido experimentada, pelos seus gestores mais cotados: os socialistas. A história recente não pode criar ilusões. O que se passa em Itália exemplifica as razões pelas quais os novos meios de comunicação têm sido perversamente utilizados, ao serviço das causas mais repelentes.

Berlusconi emerge desse caos. O homem é inteligente mas ignaro: desprovido de qualquer ideia doutrinal, possesso de poder, tem como amparo todo o sistema corrupto de um país que existe no maniqueísmo do bem e do mal. O mal, em Berlusconi, antigo cronner de viagens turísticas, reside no socialismo. Tem uma certa razão: o “socialismo” que por aí anda obriga-nos à mais categórica das rejeições. O tom militante, voluntarista, agressivo e grosseiro do seu discurso faz-nos lembrar certo político português, e suscita a adesão e a mobilização porque o seu activismo comunicacional produz forte impacto. Berlusconi é o produto “democrático” (os votos elegeram-no) de uma democracia notoriamente enferma.

Por outro lado, a ausência de debate, em toda a Europa, torna cada vez mais confusa uma solução, e mais ecléctica a rede de interesses que se vai criando. Não é, apenas, a Esquerda que está imersa numa crise dramática. A Direita também demonstra evidentes sintomas de perplexidade. Evidentemente, falo de uma Direita inspirada nos valores das doutrinas sociais, nos quais a Igreja saída do Concílio Vaticano II desempenhou um papel relevante. Porém, as ideias de que João XXIII era a face visível foram rapidamente expungidas logo a seguir à sua morte. Os Papas seguintes aplacaram qualquer avanço progressista, e acentuaram um reaccionarismo medieval que afastou muita gente do seu embalo.

Pode-se construir uma democracia quando as forças componentes da sociedade estão viciadas de raiz? Se Berlusconi é o produto típico de uma era de vazio cultural e de uma deriva ideológica que começou muito antes da queda do Muro de Berlim, então, a soberania do povo, normativamente expressa no voto, deixa de possuir qualquer significado.

Em Portugal, por exemplo, assiste-se ao afastamento dos intelectuais das relações com a política. Uma Imprensa acrítica e, até, subserviente ao império dos grandes interesses; uma Televisão imbecilizadora; uma Rádio propagandista de valores culturais que agridem os nossos; uma empresariado analfabeto, preguiçoso e ganancioso; políticos sem dimensão, mentirosos, evasivos – teria, obrigatoriamente, de dar nisto. Veja-se: um homem que foi o pior primeiro-ministro de sempre ressuscita da mediocridade glauca e pegajosa, recupera as atenções de jornalistas menores, e é bem capaz de, um dia destes, ser o mimetismo de Berlusconi e voltar ao poder.

O mundo que acabou não foi substituído por um mundo melhor. Pelo contrário. Articulistas arfantes, muito preocupados com a falta de liberdade em outros países, praticam um jornalismo de reverência, inverso do jornalismo de revelação e de combate, absolutamente urgente e necessário, até porque faz parte da sua específica natureza.

A negação da liberdade, como factor decisivo de segurança, está em marcha. Assim como a negação da própria individualidade em proveito da subjectividade de uma teia de interesses que tem produzido a descontinuidade e a ausência da crítica. Os Berlusconis resultam desse vazio. E têm muitos mais nomes. Em Portugal, andam por aí.

APOSTILA – Um extraordinário acontecimento literário: a reedição (saíram dois dos três volumes) do clássico de Robert Musil, “O Homem sem Qualidades.” Li-o, há muitos anos, numa edição francesa do Livre de Poche. Esta, agora, leva a chancela da Dom Quixote, e a tradução, prefácio, notas e aparato de um prestigiado germanista, ensaísta de garra e professor respeitado: João Barrento. Houve uma outra edição, da Livros do Brasil, e saudações sejam feitas à velha casa da Luz Soriano. Mas esta edição é outra coisa. Enobrece a Dom Quixote, honra o tradutor e engrandece o leitor. Bem hajam!

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