Opinião
Assassinar em nome de quê?
Os panegiristas da intervenção norte-americana no Iraque contraíram votos de silêncio. Depois da incessante epifania acerca das virtudes admiráveis dos queridos Bush e Blair, fizeram a transição do calor entusiástico para o mutismo do faz-de-conta.
Bush sofre humilhações permanentes como se nada fosse com ele: esboça aquele sorriso matóide e afivela uns dislates aterradores. Blair, esse, apoiado num marquetingue tão hábil que conseguiu ludibriar os habitualmente cautos ingleses, deixa o seu país de rastos, moral, cívica e economicamente.
Soldados das forças "aliadas" caem como tordos. Mas o número de iraquianos mortos atinge números assustadores. É difícil ocultar a natureza belicista do império. Gente como os grandes escritores Gore Vidal e Norman Mailer escrevem sobre a vergonha que sentem em pertencer a um país que tem Bush como gerente. E até o sorridentemente comedido John Updick utilizou um arsenal de adjectivos para qualificar o que considera "a maior desgraça americana desde o assassínio de Kennedy".
A camuflagem ideológica de Bush foi raptada da doutrina Reagan, a qual não apresentava grandes variantes às anteriores políticas externas de republicanos ou democratas. A tradição de "Esquerda", nos Estados Unidos, não é mais do que um léxico. A de Direita expõe maior coerência: corresponde à defesa dos interesses das multinacionais, mesmo que para isso haja que utilizar todas as armas em depósito, apoiar ditaduras sanguinárias, invadir países, ignorar genocídios e latrocínios ou, até, patrociná-los, financiar a vadiagem mais sórdida em todo o planeta.
A invasão do Iraque não se harmoniza com nenhuma originalidade. Desde 1948-49 que os EUA exercem nefasta influência em toda aquela vasta região. Tudo o que de mau ali sucede tem os norte-americanos por detrás. E é espantosa a vertigem suicida com que as sucessivas Administrações se precipitam no abismo do descrédito, do ódio e do nojo. Há duas décadas, era a "ameaça comunista", pretexto que lhes sustentou a ideologia e, por conseguinte, a política de atrocidades, praticada um pouco ou largamente por todo o mundo. Na década de 60, uma das "frentes" mais activas foi a América Latina. Washington financiou, armou e embalou com carinho selváticos ditadores de Direita, que dizimaram populações, cometeram bárbaros crimes políticos, e afugentaram dos respectivos países os maiores intelectuais. Ajudou a derrubar governos democraticamente eleitos, casos do Brasil, do Panamá, de Grenada, do Uruguai, do Chile; e treinou terroristas de Direita no Iémen, Afeganistão, Síria, Paquistão, Iraque, Irão, Líbano, Indonésia, Filipinas, Tailândia, Camboja, Vietname, Laos. Foi o carinhoso e afável Presidente Ford que deu autorização para a Indonésia invadir Timor.
Estejam no poder democratas ou republicanos, a melodia não se altera substancialmente. Armaram terroristas até aos dentes e, agora, querem partir dentes a terroristas. O inferno de Bagdade não arrefecerá tão cedo. As labaredas ateadas continuarão a expandir-se, mesmo que as tropas "aliadas" sejam coagidas, pela força imponente das circunstâncias, a embarcar rapidamente. Saddam foi condenado e executado de forma infame. Porém, falta alguém no tribunal. Creio que vai faltar sempre. É essa impunidade que suscita a raiva e a cólera de milhões e milhões de homens, para os quais as ideias de negócio dos EUA resumem todo o negócio das ideias.
Estamos perante factos novos e novas maneiras de pensar. A mera incidência de considerarmos como fatalidade inapelável os efeitos da globalização neoliberal, impele a Direita populista a ocupar o vazio do político, deixado por uma Esquerda comprometida com o falacioso equilíbrio proporcionado pelo "centro". O "centro" não existe; e, quando emerge no discurso da "Esquerda moderna", esse epifenómeno rejeita a sinalização de problemas reais, e pratica a evaporização da cultura de solidariedade. Sócrates não é melhor nem pior do que Blair, que chegou a proferir uma lengalenga cuja índole se afirmava pela "chegada dos tempos pós-políticos".
A inoperatividade da Esquerda, ou o que dela resta, é o problema mais importante que se tem perfilado na paisagem político-social. A utensilagem cultural e conceptual da Esquerda tornou-se obsoleta. Ao converter-se em associações "apolíticas" grande número dos chamados partidos socialistas assumiram-se como inimigos de si mesmos. O subterfúgio era o combate contra o comunismo, e o marxismo configurava a doutrina do mal. O PS de Mário Soares gritava ensurdecedoramente, uma aguerrida palavra de ordem: "Partido Socialista, Partido Marxista!" Pouco depois, adaptou-se a formas de representação mais adequadas. Até que chegámos a isto.
A cumplicidade abjecta de inúmeros senhoritos com as bondades da globalização e com as inexcedíveis virtudes das chefias norte-americanas causou, tem causado, vai causar milhões e milhões de mortos. Alguns intelectuais, em geral de modesto estofo e medíocre estirpe, mas com espaço aberto na Imprensa, tentaram estabelecer vínculos de "cultura ocidental" com o actual pensamento ideológico norte-americano. É um impulso que já foi. O Iraque, afinal, parece haver-se convertido num pólo que derruba juízos e preconceitos aparentemente consolidados. E tudo indica que a América vai sofrer uma derrota tão vergonhosa como as que amargou na Coreia e no Vietname.
APOSTILA 1 - Mário Mesquita, um dos mais valorosos e originais articulistas da Imprensa portuguesa, foi despedido do "Público", onde escrevia há oito anos. Motivo apresentado por José Manuel Fernandes: incompatibilidade com as novas funções que Mesquita vai desempenhar na Fundação Luso-Americana. A prosa de Mário Mesquita sempre foi acentuada por uma ironia sulfúrica e apoiada numa cultura e numa informação cada vez mais raras em "colunistas". Serviu-se, de novo, do estilo e do tom para ridicularizar o director do "Público", numa nota final do seu artigo, publicado no passado dia 4. A não perder. Quem perde são os leitores do matutino pago por Belmiro de Azevedo, que deixam de frequentar o texto semanal de Mesquita.
APOSTILA 2 - Dilecto: mais um livro que lhe recomendo e, desta vez, um terrível requisitório contra a hipocrisia, o poder, a Igreja, a repressão - que, simultaneamente, é uma grande obra-prima da literatura: "História de Juliette ou as Prosperidades do Vício", do Marquês de Sade. Ei-la, editada por Guerras & Paz, tradução de Rui Santana Brito. O Divino Marquês pôs tudo em causa, até ele próprio, e nunca abdicou da condição de homem livre. Mesmo nas masmorras, onde penou largos anos intermitentes, ele incarnou a forma mais livre de se ser livre. Odiado e amado, por igual em doses abundantes, Sade foi recuperado pelos surrealistas e tido e havido como um dos maiores escritores de sempre.