Opinião
As mentiras da verdade
Devo dizer aos meus Dilectos que sou ouvinte atento do Rádio Clube Português. Os seus profissionais não nos tratam como beócios, procuram suscitar a reflexão de quem os escuta, propõem questões fundamentais do nosso viver, e manifestam uma activa curiosid
Há dias, um grupo de preopinantes comentava qualificações profissionais, globalização e capitalismo. Redimo-me do facto de não ter atendido à totalidade do programa. No entanto, um dos intervenientes, às páginas tantas, afirmou que os trabalhadores portugueses não sabiam o que era o capitalismo. E acentuou que, num país cujo nome me escapou, os trabalhadores possuíam um conhecimento tão profundo do sistema que até jogavam na bolsa.
O mundo do trabalho pode não saber o substrato do capitalismo, mas sente-o na pele. Quanto à circunstância de haver trabalhadores, “em um país além”, que jogam na bolsa e, por isso, conhecem o capitalismo e os seus objectivos – bom, aí, a afirmação parece-me, pelo menos, exagerada.
A crítica ao capitalismo está por fazer. Marx deu pistas importantes, e mesmo Max Weber (tido como o anti-Marx) estudou o “perigo da razão técnica” contido no bojo do sistema. Escreve: “Juntamente com a máquina sem vida [a organização burocrática do capitalismo], está a realizar o labor de construir a morada da escravidão do futuro, na qual talvez os homens se vejam, um dia – como os felás no Estado egípcio antigo –, forçados a submeterem-se, impotentes, à opressão, quando uma administração puramente técnica e boa, isto é: racional, uma administração e provisão de funcionários chegue a ser para eles o último e único valor, o valor que decide sobre a solução dos seus assuntos.”
Marcuse, que estudou profundamente o sociólogo, economista e filósofo, e Pierre Bourdieu, que o comentou, não se eximem a admitir a sua grandeza, adiantando a urgência e a necessidade de se restabelecer (hoje mais do que nunca) o diálogo de Weber e Marx como matéria fundamental de reflexão. A verdade é que as novas propostas do capitalismo não têm encontrado a resposta política e filosófica adequada. O socialismo, pelo contrário, suscita violentos ataques, amiúde irracionais, ocasionalmente interessantes, sem que a base das coisas seja aprofundada como merece.
A globalização é um dado adquirido. A unilateralidade do processo deu origem a uma brutalidade que, por vezes, atinge a selvajaria. Só não vê quem não quer. Os retrocessos sociais são impressionantes. E a derrota dos conceitos de Esquerda absolutamente notórios. Mas a Esquerda ou mais bem dito: as Esquerdas toldam-se numa falácia discursiva de discutíveis efeitos práticos. Há um discurso mole, por repetitivo. A tendência dos partidos socialistas e sociais-democratas para a “modernização” conduziu-os a um vazio inobjectivo, que determina a desconfiança dos seus adeptos. Em Portugal, os traços mais dramáticos dessa ausência de reflexão (poderia dizer: dessa capitulação ideológica) encontram-se representados num PS que deixou de ser “socialista” e num PSD que nunca foi “social-democrata”. Eis as mentiras da verdade no seu inteiro esplendor.
Há um corte nítido entre a História e os pretendidos protagonistas. Porém, as agressões do neoliberalismo, reflexo da globalização, não podem continuar. A unilateralidade deixará de o ser, quando as organizações sindicais se federarem. As crises serão periódicas e atingirão aspectos nunca vistos ou, sequer, admitidos. Weber abordou a questão no seu famoso “Economia e Sociedade”, texto que, creio, não está traduzido e editado em Portugal. “Nada do que está existirá, porque o sempre renovado compromisso com as exigências do dia adquirirá formas até então desconhecidas.”
O capitalismo triunfante nunca promete nada, ao contrário do socialismo, que tudo garante e pouco cumpre. E existe um outro problema: o de tempo. O período de aceleração em que vivemos não tem paralelo com outro qualquer da História. Em Portugal, as coisas são mais graves. Os maciços estragos culturais, intelectuais e morais provocados pelos trezentos anos de Inquisição, os cinquenta anos de fascismo e a ascensão de uma inacreditável casta de medíocres causaram intensa perturbação, inclusive nos nossos comportamentos. Como escreveu Edgar Morin: “Não chegamos a tomar consciência do presente. Sofremos o problema do atraso inevitável da consciência sobre o vivido, acentuado pela velocidade e pela complexidade.”
Os processos de decomposição social e política a que assistimos têm a ver com a inexistência de uma recomposição civilizacional que pudesse pôr cobro ao descalabro. Como é previsível, a resposta será brutal, acaso mais brutal do que a brutalidade do sistema triunfante e vigente. Mas as coisas não podem ficar como estão. Há uma urgência no dizer e no reflectir o novo, desprezando a falsa “modernidade” redutora e agressora. Até lá – leiamos, pensemos e discutamos.
APOSTILA – Além de brilhante e rigorosa jornalista, Ana Marques Gastão é uma das grande poetisas portuguesas do nosso tempo. Já Eugénio Lisboa se lhe referiu à obra com elogios que mais alevantados surgem quando se sabe da exigência crítica do grande ensaísta. Agora, com “Lápis Mínimo”, atinge um novo patamar da sua criação. Não é, somente, um livro de poemas: é uma aventura poética absolutamente incomum. Uma viagem ao interior do interior, uma vistoria aos esconsos mais secretos do ser, onde a deformação é um sinal de misericórdia e um obscuro sinal a descodificar. Estamos, Dilecto, em presença de um caso muito sério. Procure o livro, editado pela Oceanos, e viaje com Ana para um destino imponderável – e incomparável.