Opinião
As caricaturas satânicas
Para a generalidade dos cidadãos europeus, tudo isto parece descabido, porque o que aqui está mesmo em causa é um choque de civilizações que põe em confronto os valores das sociedades democráticas ocidentais e o valores do Islão que, no caso vertente, pro
A publicação de caricaturas do profeta Maomé feita pelo jornal dinamarquês «Jyllands-Posten», foi a bomba retardadora que começou a explodir um pouco por todos os continentes e a ameaçar o povo dinamarquês, conhecido pela sua tolerância e pacifismo.
A reprodução destes desenhos em outros jornais, designadamente na Noruega ou em França, ameaça, igualmente os europeus e os seus símbolos, como as representações da União Europeia em países árabes.
Estas reproduções, consideradas uma blasfémia, fizeram sair à rua, designadamente na Síria, país tido como relativamente moderado, ou mesmo em Beirute, no Líbano, onde uma parte importante da população é católica, ondas de puritanismo e de ressentimento, aproveitadas por grupos extremistas, ou então, segundo algumas análises de politólogos, por moderados com receio de serem ultrapassados no seu fervor religioso pelos fundamentalistas islâmicos.
Daí que a politização desta questão ameaça deitar mais gasolina para a fogueira de violência que já incendiou embaixadas e representações diplomáticas como a dinamarquesa e a norueguesa na Síria, e que se estende a outras partes do globo, como o Médio Oriente, Ásia e África, e se pode alargar à Europa, onde já em Bruxelas, coração da capital comunitária, cerca de 4000 pessoas se manifestaram em desagravo ao Profeta.
Por outro lado, é sabido a multiplicidade de comunidades muçulmanas que existem por essa Europa fora, assolados, genericamente, pelo desemprego, e pela exclusão social. Só na Dinamarca estima-se que existam cerca de 150 mil imigrantes muçulmanos a viver no país
Para a generalidade dos cidadãos europeus, tudo isto parece descabido, porque o que aqui está mesmo em causa é um choque de civilizações que põe em confronto os valores das sociedades democráticas ocidentais e o valores do Islão que, no caso vertente, proíbem a representação da figura do Profeta, tal como o Corão, símbolos religiosos intocáveis.
Nada que se não tenha passado há cerca de vinte e cinco anos com Salman Rushdie, na sequência dos seus versos satânicos.
Ou seja, enquanto na Europa Ocidental a liberdade de expressão é um direito fundamental, o mesmo não sucede em sociedades islâmicas onde esta é limitada pela religião.
Por outro lado, pode argumentar-se que no Ocidente embora a liberdade de expressão seja consagrada constitucionalmente, o que é certo é que ela não é absoluta e não pode ser usada para justificar a difamação, a calúnia, a obscenidade, a subversão ou a violência, sendo que a maioria das democracias proíbe a incitação ao ódio racial, étnico ou religioso. E este é o grande desafio, o de conseguir o equilíbrio que consiste em defender intransigentemente a liberdade de expressão, enquanto direito basilar da genética ocidental, mas simultaneamente impedir o discurso intimidatório ou subversivo.
De resto, vários sociólogos e políticos árabes já se manifestaram sobre estas publicações, considerando uma forma estúpida de usar a liberdade de expressão, porque símbolos sagrados de uma das mais importantes religiões do mundo são objecto de escárnio, de provocação e de falta de respeito.
No meio de tudo isto, a União Europeia ficou impotente e limita-se a reunir os vinte cinco Ministros dos Negócios Estrangeiros, bem como a incumbir o seu Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum, de promover mais diplomacia, o que implica apenas que se multipliquem os apelos à calma e ao diálogo, absolutamente inúteis face a outros valores e mentalidades.
A questão é que o fenómeno pode continuar a alastrar-se, desproporcionadamente, sobretudo se nos lembrarmos que, ao longo da história, incluindo a das Cruzadas, se matou e chacinou apenas e tão somente por causa da religião.