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Opinião
27 de Maio de 2005 às 14:07

Antes que o fumo chegue?

Nem o Estado dá o exemplo na conservação da floresta que é sua, nem disciplina os proprietários privados. Além do mais, o combate ao défice não permitirá que estes sejam justamente expropriados.

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Não sei bem porquê, mas os portugueses têm uma certa vocação para polícias e juízes. Se algo corre mal, logo avidamente se corre em ávida busca dessa secular instituição nacional, o Culpado. Aponta-se o dedo, lança-se a farpa, enxovalha-se o mais que se possa, seja na surdina de bastidores em que o passa-palavra se constitui lei, seja num qualquer tribunal de opinião pública.

Característico de um certo espírito justiceiro, o «quem foi?» cega-nos com excessiva facilidade, sobrepondo-se às questões verdadeiramente relevantes: «porquê aconteceu?»; «por que não se evitou o dano?». O «quem foi» é reactivo, actua sobre as consequências, já o dano está produzido em toda a sua extensão. Não inquire sobre as suas causas – o porquê. Traduz-se em reagir, tarde e a más horas, em lugar de agir preventivamente.

Levada às últimas consequências, a busca e punição do Culpado actuam como um elixir, tão mais profilático para a alma quanto mais elevado o altar em que aquele acabe crucificado. Mas isso não é o pior. O pior é que o «quem foi» implica, em regra, que tudo continue mais ou menos tal como está. Que o mal continue bem entranhado. E que quase nunca se actue genuinamente sobre as suas raízes.

Vem isto a propósito do flagelo dos incêndios florestais que, ano após ano, mais ou menos impiedosamente nos assola. Estamos em final de Maio e o Verão aproxima-se. Porque a chuva escasseou até agora, o país estará «mergulhado» – passe a contradição – na mais severa seca dos últimos cem anos. Só nestes dois últimos anos, largas centenas de milhar de hectares de floresta arderam. E se então os satélites fotografavam um Portugal agonizante com queimaduras de último grau, neste final de Primavera dão-nos a conhecer um país em que um tom amarelado parece ter varrido a tradicional mancha verde à beira-mar plantada. Eu acho que os indícios de um elevadíssimo risco são já por demais evidentes.

Em todos esses episódios de desgraça, brados de desencanto e indignação correram o país de lés a lés. Em todas essas ocasiões, ao jeito da caça às bruxas, se apontaram Culpados. Fossem eles Ministros, dirigentes dos serviços de protecção civil, militares. Não raramente, a reputação dos bombeiros acabou calcinada nas achas de uma inquisição que sabe apontar o dedo, mas que não move uma palha para atacar as origens do mal. Também em todas essas ocasiões, lá se ouviram as lamechices do Presidente da República, em directos com as labaredas lá mais ao fundo.

Foi também então que os sabedores da matéria enunciaram as causas de sempre, também desde sempre conhecidas. Os matos e florestas estão ao abandono. Os seus proprietários deles não cuidam. Fica caro, pois claro que fica. Não sendo um sinal exterior de riqueza, possuir terras pode dar algum, desde que não se invista nada nelas. E pode sempre acontecer que, um dia, essa coisa da afectação à Reserva Agrícola Nacional seja revogada e se possam construir uns prédios e moradias. Depois, nem o Estado dá o exemplo na conservação da floresta que é sua, nem disciplina os proprietários privados. Além do mais, o combate ao défice não permitirá que estes sejam justamente expropriados. É o eterno jogo da passagem da batata quente. Mesmo que uma floresta cuidada e protegida pudesse constituir-se numa das maiores vantagens comparativas do país.

O que vai acontecer este Verão? Só Deus sabe. Acontece, para nosso mal, que Ele já não presta serviços de consultoria na matéria. Assim, Portugal estará assim uma vez mais à mercê da lotaria dos caprichos climáticos, dos incentivos à acção dos incendiários e do «quem foi». Porém, acaso as coisas venham a correr outra vez mal este Verão, um Culpado já está «a jeito»: o Ministro da Administração Interna. Ele vai estar com a cabeça a prémio nos próximos meses, correndo o risco de vir a ser evangelicamente sacrificado para expiação dos pecados de muitos outros.

Não sabemos, também, o que entretanto foi concretamente feito no terreno – e antes que o fumo chegue - para proteger a nossa floresta de mais uma chacina. Desejando o melhor, todos tememos o pior. Com absoluta franqueza, e com a ressalva de as generalizações poderem traduzir-se em injustiça para alguns (creio que infelizmente muito poucos), Portugal pode muito em breve ficar à mercê de uma nova catástrofe ambiental e ecológica. Merecíamos melhor. Muito melhor.

P.S. 1 - Já anunciado, o número é seis vírgula oitenta e três. Direi que a magnitude não me espanta por aí além, já que desde 2003 caminhávamos com um défice «oficial» superior a 5 por cento do produto, caso se excluíssem as denominadas «receitas extraordinárias». Mas já me desconforta o modo tonto e ignorante como o ansiado relatório da «Comissão Constâncio» tem sido abordado pela generalidade da comunicação social. Como qualquer relatório, também este assenta em pressupostos, assim como em pressupostos assentava, bem ou mal formulado, o Orçamento de Estado para 2005. Seja como for, o facto só abona, uma vez mais, em favor da criação de um órgão autónomo incumbido do acompanhamento técnico e fiscalização das contas públicas, seja por via do seu enquadramento no âmbito da Assembleia da República, seja através do reforço das competências do Tribunal de Contas.

P.S. 2 - O Governo tratou com adequado recato e discrição o processo de reavaliação do défice público previsional para 2005. Confesso que cheguei a temer que o Conselho de Ministros desta passada terça-feira fosse apressadamente concluído a tempo de o verbo jorrar na abertura dos telejornais das vinte. Não aconteceu, o que é um bom sinal. As questões em jogo são demasiado complexas para que se compadeçam com precipitações mediatizadas que já não convencem ninguém.

P.S. 3 - Do programa eleitoral do Partido Socialista para esta legislatura: «A consolidação orçamental não está feita. O PS recusa, por isso, as propostas irresponsáveis de baixa de impostos, que não só comprometeriam o combate ao défice como agravariam a degradação do funcionamento de serviços essenciais do Estado.» De alguma forma, o aviso à navegação estava feito, ainda que em plena campanha eleitoral alguns socialistas não tivessem resistido a umas irresistíveis promessas de que não os impostos nunca seriam aumentados. Bom, «o que tem que ser, tem que ser e tem sempre muita força». Faits divers à parte, o «Estado de Graça» de José Sócrates terminou. Resta exigir-lhe firmeza e determinação no que há a fazer. Creio que nunca antes como agora as condições são propícias às verdadeiras «reformas estruturais». Incluindo – não só, é claro, mas isso tem que ser abertamente assumido –, o emagrecimento da função pública.

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