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Ainda as SCUT, ou como as pressas dão maus resultados

Há cerca de duas semanas foi divulgado o estudo “O impacto económico e orçamental do investimento em SCUTs” – as famosas vias rodoviárias sem cobrança ao utilizador –, da autoria dos professores Alfredo Marvão Pereira e Jorge Miguel Andraz.

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Há cerca de duas semanas foi divulgado o estudo "O impacto económico e orçamental do investimento em SCUTs" – as famosas vias rodoviárias sem cobrança ao utilizador –, da autoria dos professores Alfredo Marvão Pereira e Jorge Miguel Andraz.

Tratou-se de um documento patrocinado e encomendado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, presidido pelo Engº João Cravinho – precisamente o mais acérrimo defensor do modelo SCUT em Portugal, uma espécie de "pai" das SCUT. Neste enquadramento e sem surpresa, este relatório apresenta conclusões que apontam para um impacto global muito positivo das SCUTs sobre a economia, para além de serem financeiramente sustentáveis.

Depois de ter lido com atenção este documento, creio que mesmo quem é um entusiasta do modelo SCUT – e esse não é, objectivamente, o meu caso, como o leitor mais assíduo desta coluna já sabe, pois prefiro o princípio do utilizador-pagador, ainda que, claro, admita excepções1 – não poderá deixar de fazer vários reparos à análise apresentada. No entanto, do meu ponto de vista, há uma crítica que se sobrepõe a todas as outras, que esteve na génese de todo o problema das SCUT em Portugal e que, portanto, faz com que, por mais respeito que me mereçam – e merecem – os dois autores do estudo, acaba por lhe retirar validade.

Não, não estou a referir-me ao facto de toda a análise econométrica do modelo desenvolvido assentar em observações do período 1980-1998, isto é, num período em que o contexto da economia portuguesa era bem diferente daquele que hoje vivemos e em que viveremos no horizonte temporal das projecções apresentadas (cerca de 30 anos).

Portugal aderiu à Zona Euro em 1999, o que motivou uma modificação estrutural de circunstâncias e um novo modelo económico, em que a interacção e a influência cruzada das variáveis económicas se alterou. Neste contexto, que relevância pode ter a projecção de um impacto das SCUT no PIB, no investimento e na arrecadação de receita fiscal muito superior ao seu custo e aos encargos que lhe estão associados?...

Também não me estou a referir à conclusão de que a região do país que mais beneficia com o modelo SCUT é a de Lisboa e Vale do Tejo. Cujo território não só não é atravessado por nenhuma SCUT, como é, de longe, a região mais rica do país. Ora, de acordo com este estudo, esta região de Lisboa e Vale do Tejo capta quase 50% do efeito total no PIB português – o que significa que cerca de metade é dividido por todas as outras regiões. Parece, pois, ser pertinente questionar: é desta forma que se constrói um país mais harmonioso, equilibrado e justo? Ou: é assim que se contribui para a diminuição das assimetrias regionais, para aproximar as regiões mais desfavorecidas das mais ricas?!

Poderia igualmente mencionar a inquestionável desvalorização da questão orçamental feita neste estudo. É que o único horizonte considerado para as conclusões é o longo prazo (sensivelmente 30 anos) – o que é um erro. Porque, se se optou, em 1997, pelo modelo SCUT em detrimento do modelo convencional, tal deveu-se, essencialmente, às restrições orçamentais que o país tinha que cumprir para aderir à Zona Euro, que inviabilizariam a realização de obra num prazo rápido que, à época, o Governo Socialista entendia como adequado.

Daí o ter-se optado pelo modelo SCUT. Com o pressuposto – cuja bondade, a priori, não questiono – de "daí por 8 a 10 anos", quando as responsabilidades financeiras assumidas começassem a cair no Orçamento do Estado, as dificuldades orçamentais não se fizessem sentir de forma tão forte. Mas tal deveria ter implicado uma adequada planificação financeira plurianual ao nível da Administração Central que, infelizmente, não foi feita. O que, a par do que também não foi feito em matéria orçamental nessa altura (final dos anos 90), levou a que chegássemos, hoje, à situação orçamental que se conhece. Logo, não me parece correcto desvalorizar as restrições orçamentais. Que são de curto prazo, é certo - mas a verdade é que o longo prazo é atingido com uma sucessão de curtos prazos e de compromissos que devem ser cumpridos!... E é ou não verdade que o saneamento das nossas contas públicas é uma condição necessária para atingirmos um crescimento económico forte, saudável e sustentado? Logo, como pode a questão orçamental ser desvalorizada?

Poderia, assim, criticar esta vertente do estudo. Tal como poderia ainda apresentar outros motivos de crítica.

Mas há uma censura que, de facto, faz com que continuar a desfiar outros motivos de crítica não seja o mais importante.

Na verdade, a questão essencial da aplicação do modelo SCUT em Portugal é pura e simplesmente ignorada neste estudo - e ela prende-se com o facto de este modelo ter começado a ser desenvolvido sem a existência de um adequado enquadramento legal para regulamentar parcerias público-privadas – pois é disso que estamos a falar –, que só o Decreto-Lei nº 86/2003, de 8 de Abril, veio conferir. Como foi possível iniciar um modelo sem enquadramento legal? Se a esta gravíssima lacuna juntarmos uma evidente vontade de mostrar obra feita rapidamente, chegamos a uma situação em que o plano de pagamentos inicialmente planeado foi já objecto de derrapagens importantes, nomeadamente devido a encargos com expropriações e outras indemnizações financeiras, e compensações por alterações derivadas de exigências ambientais inicialmente não previstas. De facto, as projecções do Tribunal de Contas apontavam, em 2003, para pagamentos contratualizados do Estado a privados que ascendiam, até 2031, a cerca de 14,95 mil milhões de euros a preços correntes (ou cerca de 10,13 mil milhões de euros a preços constantes de 1999).

No entanto, a consideração da última actualização dos valores relativos aos encargos financeiros, efectuada em 2005 pelas Estradas de Portugal, elevou os valores atrás referidos para 16,47 mil milhões de euros e 11,33 mil milhões de euros, respectivamente. O que representa uma derrapagem de cerca de 1,5 mil milhões de euros a preços correntes, ou de 1,2 mil milhões de euros a preços constantes de 1999. Para termos uma ideia da gravidade desta derrapagem, basta referir que 1,5 mil milhões de euros é cerca de 1% do PIB português. Ou que os investimentos orçamentados para 2006 pelo Ministério das Obras Públicas ascendem a 807,6 milhões de euros.

É, pois, fácil concluir que, nos anos que aí vêm até 2031, uma parte substancial do investimento anual deste ministério será afecta ao pagamento de despesas feitas anteriormente, ficando o (relativamente pouco) que resta para novas construções, reparações e manutenções. Só para termos uma ideia, até 2025, os pagamentos anuais relativos às SCUTs nunca são inferiores a 600 milhões de euros (a preços correntes), sendo os anos de 2007 a 2011 os mais penalizadores.

E será que nada mais virá a ser descoberto no futuro que faça aumentar o já-agora-acrescido plano de pagamentos? Nada garante que não?

Mas sobre tudo isto, nem uma única reflexão, nem um único apontamento no estudo elaborado.

O que não deixa de ser lamentável. Porque se a existência de SCUTs pode ser justificada em regiões menos populosas, menos desenvolvidas ou onde as condições sociais e económicas não viabilizem o princípio do utilizador-pagador, não creio que haja qualquer justificação para o facto de se ter avançado para este modelo nas condições em que tal sucedeu – o que hoje, como se viu, está a acarretar danos financeiros elevados ao Estado português e, claro, a todos nós, que temos que os pagar. Afinal, a pressa raramente é boa conselheira?

1 Ver, para o efeito, os textos de 4 e 18 de Agosto de 2004, "O Decreto-Lei nº 86/2003 e as concessões rodoviárias em regime SCUT, partes (I) e (II).

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