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25 de Junho de 2012 às 10:35

A supervisão dos produtos financeiros

Pela primeira vez numa comunicação pública um Governador do Banco de Portugal, neste caso o Dr. Carlos Costa em audição no Parlamento, veio mostrar-se preocupado com a qualidade técnica de supervisão

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Pela primeira vez numa comunicação pública um Governador do Banco de Portugal, neste caso o Dr. Carlos Costa em audição no Parlamento, veio mostrar-se preocupado com a qualidade técnica de supervisão que a instituição que dirige pode produzir, em função dos meios técnicos que dispõe, nomeadamente no tocante à vertente humana. Pela primeira vez, mas com uma transparência salutar, vem reconhecer publicamente a dificuldade de um elemento que é estático e passivo na sua actividade em analisar outro que é activo e dinâmico.

Como resolver este dilema num mundo aberto, livre e concorrencial onde todos os dias surgem novos instrumentos e em consequência os produtos financeiros derivados? Para os mais conservadores, ou para os que são contra a liberdade no mercado, a resposta seria: não entendo esse produto, logo não permito a sua comercialização. Mas, o mundo global em que vivemos não funciona assim, felizmente.

O inicio da década de 80 do passado século é marcado pela desregulação financeira, ou seja, a liberdade de construção de produtos financeiros inovadores que se enquadrassem numa microsegmentação com diferentes perspectivas do lado de quem os desenvolvia, desde a venda cruzada (cross selling), oportunidades de negócio ou a respectiva ampliação, até à resolução de problemas de balanço das instituições financeiras que os lançavam. Em virtude disso foram emitidos para o mercado milhares de produtos, uns excelentes ou outros classificados por aquilo que agora se designa por tóxicos.

O autor destas linhas está à vontade para abordar este tema: construiu produtos financeiros com excelentes resultados para todas as partes (os designados OTC/ over the counter, vendidos ao balcão), foi supervisionado pelos reguladores (Banco de Portugal e CMVM) e já em 1994 escrevia um artigo no "Diário Económico" chamando a atenção para a sofisticação/complexidade de alguns desses produtos que pululavam por aqui ou no mercado internacional que não levavam a nada, eventualmente a perdas, sem que as autoridades pudessem classificá-los como de elevado risco.

Apesar deste último ponto, sou um adepto da desregulação e considero-a mesmo necessária porque ninguém me pode proibir de construir algo de inovador e de forte valor para emitente e cliente desde que inserido nos parâmetros de âmbito prudencial e comportamental a que estou sujeito na qualidade de instituição financeira. E esta deve reger-se pelos princípios éticos mais elementares em termos de conduta.

Contudo, nem todos são iguais e por isso a supervisão na sua dupla vertente, prudencial e comportamental, é fundamental. Mas reconheço que quem está no terreno todos os dias na arte de um negócio muito técnico, com muitas varáveis, com muito estudo, investigação, contactos internacionais, dificilmente pode ser acompanhado por alguém cuja função (de supervisor) é muito passiva e que não se insere no espírito agressivo ou dinâmico do construtor do produto financeiro.

Por vezes, numa primeira análise, é muito difícil ao supervisor compreender todas as características do produto desenvolvido pelo supervisionado, e tudo o que está inerente ao mesmo. Daí que, no mercado desregulado, outros actores tenham ressurgido com forte acção, como sejam as agências de rating. Só que o resultado foi o que se viu e mesmo assim ninguém consegue sancioná-las.

Poderíamos analisar muitos casos em Portugal onde a acção do regulador (supervisor) é essencial para que não permita a ultrapassagem de limites ao construtor/colocador de produtos financeiros. Uma edição do "Jornal de Negócios" não chegava. Mas torna-se necessário o regulador obrigar o colocador a introduzir uma chancela de "produto de risco" a qualquer um que esteja a comercializar, definindo, inclusive, a dimensão desse risco, a fim de que o subscritor/adquirente conheça o que está a fazer. Até nas matérias mais elementares, como num depósito à ordem, o cliente deve conhecer os seus direitos em caso de problemas quando estabelece a relação contratual com a entidade financeira. A iliteracia financeira é algo que deve ser combatido e a acção do regulador é essencial nesta matéria. Infelizmente o trabalho que está a ser feito em Portugal, apesar da crise surgida em 2007, ainda é muito lento.

Poderia dar muitos exemplos do que de mal se passou no nosso País nos últimos anos sobre estas questões de âmbito prudencial ou comportamental que ultrapassaram os limites. Esqueço o BPN que é de polícia, para além do falhanço de supervisão. Mas, remeto-me a um outro conhecido e tratado: o caso BPP-Banco Privado Português. Este banco teve até há cerca de oito anos como presidente, falecido nesse momento, uma das pessoas mais sérias, conservadoras, cultas que eu conheci na minha vida e com quem trabalhei no Santander Portugal. Se há uma elite em Portugal e no mundo, o Dr. Francisco Veloso fazia parte dela. Emílio Botin, presidente do Santander, chamava-lhe "meu presidente".

A construção de produtos pelo BPP inseria-se no que se designa por desintermediação, aproveitando a desregulação. Até aqui tudo normal. Contudo, nos últimos tempos de existência do banco a comercialização desses produtos era publicitada no semanário "Expresso" com garantia do capital, o que me surpreendeu.

Há cerca de uns cinco anos e porque conhecia o produto telefonei a um dos administradores admirado com essa publicidade. Como podem garantir o capital? - perguntei. "Através de provisões" - respondeu-me. Por mais instrumentos de protecção que o BPP pudesse arranjar para os seus produtos eu não via a fórmula de garantia. "E se as cotações descerem mais de 30%, como podem garantir? - voltei a perguntar. O BPP não tem capital para a dimensão dos produtos e com uma quebra dessas - acrescentei. Do outro lado apenas uma resposta: "A CMVM já viu isto tudo, nomeadamente a publicidade, e autorizou-a".

Este caso é típico: falhanço na supervisão prudencial e na comportamental. Não é relevante a abordagem técnica do lado do supervisor no tocante à natureza do produto financeiro e este não pode ser desautorizado por aí. Mas sabe-se que é um produto de elevado risco, que o cliente deve ser disso informado e que em termos prudenciais a instituição não tem capital para responder ao compromisso, logo deve ser muito limitada a respectiva emissão com obrigatoriedade de um "sinking fund" à partida, por exemplo.

São estes os termos em que o supervisor deve actuar quanto ao prudencial e neste caso não o fez e deixou que fosse publicitado algo que não podia ser cumprido, quanto à matéria comportamental. Em termos de colocação devia exigir a chancela de "produto de risco". Quanto à gestão dos activos, que são pertença dos subscritores, o supervisor deve interferir para saber se estão a ser utilizadas boas práticas, mas não pode discutir os critérios de alocação de recursos, caso se satisfaçam os parâmetros que estão consignados na emissão do produto.

Vamos deixar aos comités de investimento dos bancos as discussões ferozes que aí existem sobre alocação de recursos. Esta discussão entre regulador e instituição só pode existir se esta última não estiver a cumprir o que está previsto no regulamento do produto. Mesmo assim, quer aqui em Portugal, quer noutros mercados muito evoluídos, existe e existirá sempre um gap técnico entre quem está activo no mercado e quem detém funções passivas, pelo menos em termos temporais.




*Economista, autor de "Guia de Bolsa - Introdução ao Mercado de Capitais", Bnomics, 2011.

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