Opinião
A propósito de Adele
Uma das marcas que perduraram da revolução que ocorreu há mais de trinta anos é a que cataloga situações, como se elas fossem catalogáveis como o foram à época. A mais visível é a «marca» da «luta de classes» que os sindicatos se esforçam por não deixar c
A verdade é que, sobre ser datada e desfasada, a «luta de classes» de que falam, com maior ou menor ênfase, as centrais sindicais, se reduz ao binómio trabalhadores - capitalistas, versão melhorada da relação entre operários e patrões ou entre agricultores e latifundiários. Trinta e tal anos depois é conveniente melhorar, ainda que pouco, a terminologia. Ocorre que tão antiga como esta «luta de classes», ao menos no caso português, existe outra. E ainda mais antiga por esse mundo fora. Com muito menor visibilidade, até porque assim convém às partes envolvidas. Que estando em campos diametralmente opostos, arranjam frequentemente maneira de chegar a acordo. As partes são industriais, de um lado, e artistas, de outro, homens do dinheiro e intelectuais, mecenas de si próprios e protegidos deles próprios. Por estes dias, a propósito da compra de um célebre quadro de Klimt, esta outra «luta de classes» ressuscitou. Para ser revisitada.
A história é quase fantástica. Sobre ter começado, ao que se supõe, com segredos de alcova. Que, como é próprio, começam por se supor. No início do século XX, o retrato de Adele Bloch-Bauer, aristocrata austríaca, foi pintado por Klimt, imediatamente apontado como seu amante. A encomenda tinha sido feita pelo marido de Adele, um industrial de açúcares de profissão e judeu de filiação. Adele, que liderava um salão literário de Viena terá pedido ao marido para doar o quadro ao museu nacional da Áustria. O industrial não viu nisso o interesse que tinha visto no seu casamento com a aristocrata. E não o fez. O quadro foi, depois, confiscado pelos nazis e, entretanto, recuperado pela Áustria. Como se não chegasse, a sobrinha de Adele desencadeou uma batalha jurídica contra o país para reaver o retrato da tia. Ao fim de vários anos de duros pleitos judiciais, a sobrinha, de nome Maria, conseguiu reaver a propriedade da obra. Naturalmente satisfeita por ter a tia, de novo, em casa, num gesto que alguns, não próximos, leram como exemplar. Mas depois pensou e logo tratou de instruir o seu advogado para iniciar as negociações de venda. Com cláusula de confidencialidade. Apesar dela, os números foram conhecidos: 105 milhões de euros. E o comprador também: Ronald Lauder, filho de Estée Lauder que começou a vida (a mãe) a vender cremes. Dos cremes aos champôs e aos perfumes, numa grande e afamada empresa liderada por seu filho.
E, assim, o quadro, cujas motivações não são claras, mas que o negócio dos açúcares permitiu que fosse encomendado volta à sede própria dos negócios, agora nos domínios da cosmética. Ronald Lauder fez o negócio da vida, segundo o próprio, e vai expôr o quadro na sua «Neue Galerie». As autoridades de Nova Iorque concedem, contristadas, que é melhor que fique na cidade a sair de lá, embora tenham sido batidas na luta pela compra. Perdurarão, para serem vistos, Adele e Klimt. Pelo meio ficarão Ferdinand, o marido, que não será recordado por nenhuma boa razão. E Maria, a sobrinha, que também não. Mas que, entrementes, ficou rica. Objectivo que, casualmente, estaria nos seus planos.
A verdade é que o fascínio de homens aparentemente pouco letrados e «self made» pelos intelectuais e artistas que dizem desprezar representa o outro lado da «luta» entre classes. Um lado escondido mas real. E um lado que convém a ambos. Porque uns têm e querem ser. Ou parecer. E outros são e sentem-se no direito de também ter.