Opinião
A política agrícola comum
O tema tem sido tratado tecnicamente, politicamente, jornalisticamente. Mas o que me preocupa aqui é vê-lo numa outra perspectiva, tentando perceber que espécime zoológico discute a coisa e como pode ser distorcida a sua visão.
Como qualquer matéria aparentemente técnica, pode ter uma análise na perspectiva da civilização, ou seja, da fauna, que é para mim a mais interessante porque a menos banal.
Creio que o leitor já terá tido a grata experiência de ver dois ou mais burgessos a discutir um tema com um ar de condescendência. Não os condenemos, porque são realmente peritos, nem que seja na condescendência. Uma longa tradição como objecto da mesma levou-os a mimar razoavelmente a atitude. Ora dá-se o caso de vermos os copeiros exercerem a sua condescendência sobre a política agrícola comum europeia com muita frequência. Como a agricultura e a copa fazem parte de um processo produtivo integrado, mais uma vez me parecem estar autorizados, também por esta via.
Ouçamos a sua conversa e vejamos assim em primeiro lugar os horrores que se dizem desta monstruosa política comum.
Eis mais um exemplo dos absurdos da política europeia, afirmam. Vejam-se os Estados Unidos, esse paradigma de racionalidade, eles nada têm desta política proteccionista. Pois, só é pena não ser verdade. Desde pelo menos só anos 80 do século XX que a CNUCED, a organização das Nações Unidas competente, que se sabe que a política americana para a agricultura é tanto ou mais proteccionista que a europeia. A diferença é que, em vez de ocorrer por via de subsídios directos, ocorre por via de empréstimos concedidos por uma sistema de caixas agrícolas em que são perdoados juros, e mesmo o reembolso do capital, ou por via de contratos para as forças armadas ou ainda por intervenções políticas do governo americano junto de outros países. Com o mal dos outros bem podemos todos, mas parece-me mais razoável não invocar santos que não o são para condenar pecados de demónios que estão longe de o ser. Liberal nesta matéria que eu saiba, só a Nova Zelândia.
A política agrícola comum destrói os mercados do terceiro mundo. Sim, em parte é verdade, mas a Europa, ao contrário dos Estados Unidos, teve tradicionalmente uma política de apoio a esses mercados, a única consistente a nível mundial. Pecando nem menos nem mais que os americanos, redime-se muito mais.
A política agrícola comum representa uma imensa percentagem do orçamento comunitário. É verdade. Mas são os mesmos que querem que este seja o mais pequeno possível. O sofisma aqui é matemático. Basta passar o orçamento para 5% do PIB europeu e teríamos que a parte da política agrícola comum seria de apenas 8%.
Para que serve a política agrícola comum então, esta bête noire tão odiada pelos propagandistas?
Numa Europa morta de fome, com uma longa História de fomes, conseguiu fomentar o mais longo período sem fomes na História europeia. Numa Europa que perdia as colónias permitiu reduzir os efeitos de perdas patrimoniais incomensuráveis (embora não económicas no cômputo geral) de vastas zonas de produção agrícola. Quando surgiu fez todo o sentido. Matou a fome na Europa.
Em segundo lugar, sem uma política agrícola comum, a integração económica seria apenas industrial. O imenso êxito da EFTA mostra a valia de uma integração sem agricultura.
A tara não é inicial, mas apenas se trata de mais uma vítima do seu próprio sucesso. Mas não falo de virtudes meramente pretéritas. Ainda hoje em dia a independência alimentar da Europa é um elemento estratégico fundamental. Numa negociação (para já não falar de uma guerra...) que seria uma Europa que não pudesse garantir mínimos de auto-suficiência alimentar? Que pressões se poderiam exercer sobre a Europa? A dependência energética mostrou-nos os custos de qualquer dependência. Choques petrolíferos, poder islamista, não teriam sido possíveis sem essa dependência.
Se o primeiro fundamento é estratégico, de independência, o segundo é ecológico. Há espécies tipicamente europeias, variantes que apenas se encontram na Europa. A agricultura permite a manutenção de campos, de variedades biológicas, do ordenamento das florestas, e da paisagem. Quando uma espécie desaparece é de vez. Quando uma técnica de cultivo desaparece dificilmente se constrói ou então apenas com custos muito elevados.
O terceiro é cultural. Para o bem ou para o mal a Europa tem também uma alma camponesa. Não é só na "maldosa" França, mas na Itália, em Portugal ou na Holanda que os agricultores têm um peso de presença muito maior que o seu peso económico. Se isso faz deles muitas vezes meninos mimados, não deixa de ser igualmente verdade que existe uma simbólica europeia que eles representam. Mas falo igualmente da cultura culinária. O Japão tem apenas uma cozinha nacional; só a França, e esquecendo variantes locais e de elite, tem mais de quarenta cozinhas regionais. O continente mais rico do mundo em culinária é a Europa. Tente o leitor provar uma sobremesa chinesa, turca ou indiana original e verá a diferença. Se algum estudo sério fosse feito sobre a tipologia geográfica das cozinhas europeias ver-se-iam muitos traços comuns, mas igualmente uma diversidade imensa. Basta viajar para Itália para ver que cada cidade, cada vilória, pode ter uma cozinha original. Ora, dá-se o caso de esta culinária carecer de matérias-primas, e estas são dadas pela agricultura.
Imagino os olhares condescendentes dos aristocratas supra referidos. Santos Céus, estamos a falar de assuntos sérios e não de culinária. A verdade é que entre o cous-cous com canela e uma verdadeira Charlotte Russa (para quem já teve o privilégio de a provar) não vão apenas ingredientes e preparações diversas, mas mundos, um abismo de diferença no modo de vida, na riqueza de aproveitamento da vida. Um mundo sem a doçaria austríaca seria tão pobre quanto um mundo sem Rafael. Os autores podem não ter grandeza cotejável, mas as obras são igualmente necessárias ao mundo.
Mas os cultores da condescendência insistem. Temos de lutar pela eficiência económica. Esse o valor fundamental. E têm razão, é um valor fundamental. Mas se todos os aspectos da vida fossem determinados pela eficiência económica ninguém desperdiçaria um tostão a pagar jantares e passeios. Seria muito mais eficaz a prostituição que tem custo fixo (risco pré-conhecido) e resultado final garantido. Num mundo de mera eficiência económica veríamos que existem espaços urbanos nobilíssimos, ocupados com trastes velhos como palácios e catedrais, muito mais bem aproveitados se se fizessem centros comerciais. Percebo que as criaturas se sentissem mais em casa sem antiguidades e no meio da prostituição. Seria um mundo que lhes teria mais forte ar de família. Existem apesar de tudo matérias, e em todas as matérias, dimensões, que não podem ser baseadas em cálculos económicos, sobretudo se forem de curto prazo.
Sob o ponto de vista económico, dizem-me economistas que a agricultura tem características que exigem que haja sempre uma política agrícola. Ao contrário de outros sectores, o clima, a natureza do produto (perecível) e dos locais de produção exigirá sempre uma intervenção pública para colmatar as fracturas de um mercado com esta natureza.
Se o leitor quiser encontrar o espírito jacobino, não deve visitar a França. O espírito jacobino, a vontade de arrasar sedimentos, encontra-se entre os estreitinhos da economia (não entre economistas a sério, mas em leitores de panfletos). A obsessão é a da sociedade pós-industrial. Como os maiores valores acrescentados vêem desta economia pós-industrial, podemos largar todos os outros níveis económicos. A indústria, a agricultura, o artesanato.
Há pessoas para as quais o conceito de qualidade de vida não faz sentido. Falta-lhes herança familiar para tal e com frequência o espelho demonstra-lhes as impossibilidades de tal pretensão. Da parte que me toca, ter uma economia próspera mas alimentada apenas a sanduíches seria um mero inferno para mim. O problema passa por saber que essa qualidade de vida é um bem, que temos de manter um equilíbrio de vida social e ecológico e independência em relação a chantagens alheias ou forças de pressão de interesses externos à Europa. E ao mesmo tempo evitar o desperdício de recursos com excedentes. Nunca condenarei a política agrícola comum, mas apenas os seus excessos. E convido o leitor a reflectir se por detrás da crítica extrema não estarão interesses menos definidos. Por vezes bem intencionados. Mas por vezes menos honestos.