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A nova lei das rendas: o fim de uma indecência do Estado?

Salazar congelou as rendas em Lisboa e no Porto. A revolução alastrou essa "benesse social" a todo o território. A democracia é agora culpada de centros urbanos apodrecidos, de cidades invisíveis e de hediondos crimes locatícios

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1.A nova lei das rendas constitui uma oportunidade crucial para a reabilitação das nossas cidades, para a reposição da equidade entre inquilinos e senhorios e para a revitalização da fileira da construção civil. Todos estão cientes do absurdo a que se chegou e da iniquidade que se protela.

Salazar congelou as rendas em Lisboa e no Porto. A revolução alastrou essa "benesse social" a todo o território. A democracia é agora culpada de centros urbanos apodrecidos, de cidades invivíveis e de hediondos crimes locatícios.

2.Os episódios de senhorios arruinados e de inquilinos oportunistas andam de par com indignas condições de vida e de incumprimentos da lei, na expectativa de que ela mude ou os moradores faleçam. Assim têm agonizado as cidades e os homens.

Os velhinhos, que a lei de 1990 quis proteger, já morreram todos, mas continuou viva a lei que fez morrer os seus lares e a dignidade deste direito à habitação. 33% das rendas são ainda anteriores a 1990 e após a lei de 2006 continuaram quase todas "congeladas"; 70% delas pagam menos de 100 €; 44% menos de 50 € . Estamos a falar de 252 mil fogos. Quase todos carecem de obras urgentes.

Transformamos Portugal no País europeu com maior número de proprietários (76% da população), mas sem mercado de arrendamento que se veja e com um parque habitacional histórico decrépito. Fomos bons a erradicar barracas. Não conseguimos acabar com a barraca do bloqueio das rendas nos prédios antigos.

3. A nova lei tem essa ambição e – aprovada que está - é bom que não resvale em complexidades administrativas e dilações judiciais. Um despejo é sempre uma acção traumática e uma ferida social exposta, além de uma vulnerabilidade familiar que transtorna. Mas a não desocupação ilegítima de uma casa pode ser igualmente revoltante, insuportável no esbulho e no confisco legais e mais injusta.

Importa que a lei agilize a diligência, sempre assegurando o respeito de uns e de outros. Importa que o Estado não se demita da sua responsabilidade de dirimir, delegando em mais uma instância burocrática de duvidosa eficácia mediadora. Importa que a sociedade desdramatize a mobilidade habitacional.

4.Claro que isso será muito mais fácil se o mercado oferecer alternativas que permitam às pessoas não perderem o círculo de bairro que, por vezes, as agarra à vida. É preciso que a jovem ministra, o jovem primeiro-ministro e o jovem líder do PS, olhem para os amigos dos seus pais e avós e percebam que há um equilíbrio a respeitar entre a eficiência do mercado e a rede social que não está no FB.

Liberalizar urge, porque a cartilha vinculística deixou as cidades em escombros. Mas a cartilha liberal pode ser danosa para a "civitas". São indispensáveis acompanhamentos de proximidade e apoios sociais. Vamos mexer na pólvora. Não se trata de retirar mais uma repartiçãozinha. Trata-se de expulsar alguém do seu lar. Mata-se por muito menos. Lucidez e sensatez recomendam-se. A não ser que seja para ficar tudo na mesma. E é imperioso que muito mude.

5.Liberalizar o arrendamento para ser mais justo: eis um lema que o PS devia subscrever. Ser mais justo com os jovens, deportados para as periferias; ser mais justo com os velhos, apartados desses jovens e a viverem sem condições; ser mais justo com os proprietários, impotentes, tantas vezes, para prover à manutenção do que herdaram.

6. Acresce, e não o menos, que a reabilitação urbana pode constituir uma oportunidade decisiva para a nossa economia. O peso relativo da reabilitação urbana na construção continua a ser muito pequeno em Portugal (6,2%) se comparado com os 20% dos países europeus desenvolvidos .Os ganhos podem ser menos vorazes. Certo é que ninguém investe em casas a ruir, se não puder tirar de lá os inquilinos e se isso não for fiscalmente compensador.

7. O sucesso da reabilitação urbana (há um universo de 1,9 milhões de fogos para reabilitar) não pode ficar capturado pela morosa aprovação de planos de salvaguarda de zonas históricas. São meses para adjudicar, anos para elaborar e aprovar. Não pode ser. São essenciais, por isso, as operações de reabilitação urbanística isoladas e o flexibilizar das exigências técnicas e dos procedimentos.

8. Junte-se-lhe o acompanhamento social e a adaptação dos fundos vocacionados e talvez a salazarenta lei se enterre de vez. Porque, essa, foi uma lei que se tornou indecente para as partes e que tornou partes das nossas cidades, notoriamente indecentes.

Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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