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07 de Junho de 2012 às 23:30

A hipótese de duas moedas nos países fracos da zona euro

Surgiu recentemente a notícia de que um banco privado alemão, o Deutsche Bank, propôs que, na Grécia, passe a circular uma moeda própria paralelamente ao euro.

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Surgiu recentemente a notícia de que um banco privado alemão, o Deutsche Bank, propôs que, na Grécia, passe a circular uma moeda própria paralelamente ao euro. A ideia corresponde, na prática, a colocar a Grécia numa posição bastante próxima da dos países do grupo designado por EMU II, que preparam a sua entrada no euro, e que seguem um processo semelhante ao que foi seguido pelo grupo dos países fundadores, durante a segunda fase da passagem à moeda única na década de 90.

As taxas de câmbio das moedas dos países do EMU II podem flutuar em torno da sua cotação central relativamente ao euro, dentro de margens pré-definidas. É de presumir que a proposta do Deutsche Bank pressuponha a aplicação desta mesma norma à Grécia e aos que, em condições equivalentes, saiam do euro, com a diferença de que estes teriam duas moedas a circular: a moeda nacional e o euro. Outra diferença importante é a de que, enquanto os atuais membros do grupo EMU II atravessam um processo de ganho de credibilidade, aqueles que sigam a trajetória oposta, saindo do euro, estão num processo de perda de credibilidade, o que tem implicações importantes sobre a capacidade de manterem estável o valor externo das suas moedas.

A proposta é pertinente, porque é notório que a zona euro está em rota de fragmentação, apesar de esta não ser inevitável. O euro é uma criação política, com fundamentos económicos insuficientes, se atendermos à diversidade de estruturas económicas e de níveis de produtividade, bem como à fraca mobilidade de fatores (com a exceção da mobilidade do capital) dos países membros, não obstante o crescente grau de abertura entre essas economias. Por isso, a União Monetária Europeia contém, desde a sua génese, um acentuado risco de choques assimétricos, como a realidade tem vindo a demonstrar, cuja dimensão e natureza crónica só poderá ser ultrapassada através da cooperação entre os governos dos países membros, e não através de mecanismos económicos automáticos.

A dificuldade de cooperação entre os governos dos países da zona euro é um facto que a realidade atual também põe em evidência. A verdade é que as motivações para entrada no euro eram diferentes, o que ajuda a explicar os desentendimentos atuais. A Alemanha recuperou da estagnação dos anos 90 mais eficazmente do que teria conseguido com o marco, porque o euro lhe assegurou um aumento da competitividade relativamente aos parceiros europeus. Os países da periferia da zona euro, por sua vez, beneficiaram das melhores condições de financiamento externo.

As taxas de juro exageradamente baixas praticadas pelo BCE, nos primeiros anos da sua atividade, acompanhadas da crença de que os capitais externos iriam sempre fluir regularmente, levaram ao sobreendividamento que se revelou catastrófico. Daí que hoje, a Alemanha veja com maus olhos a permanência no euro, daqueles que passou a encarar como maus devedores, e estes, por sua vez, apenas se mantêm no euro porque temem os custos de saída, já que as boas condições de financiamento terminaram.

A utilização duma dupla moeda é um caminho para os países com desequilíbrio estrutural do saldo corrente externo, e com dificuldades na obtenção de financiamento, aliviarem o constrangimento que a permanência no euro lhes impõe, sem que a saída implique o salto para o abismo de uma moeda nacional com muito pouca credibilidade externa e sujeita a pressões para a desvalorização. O regresso à moeda própria, nessas circunstâncias, teria como consequência o encarecimento brutal dos preços dos produtos importados, causador duma convivência indesejável entre espiral inflacionista e desvalorizações sucessivas, que Portugal já atravessou nos anos oitenta.

Quais destas dificuldades podem ser atenuadas com um sistema de dupla moeda, o euro e a moeda nacional, cuja taxa de câmbio pode variar? Os salários e outros contratos passariam a ter o seu valor fixado em unidades de conta da moeda nacional, cuja depreciação relativamente ao euro se traduz numa perda de poder de compra de produtos importados, mas não dos produtos cuja produção tenha essencialmente componentes internas. Daí resultaria alguma deslocação do consumo de produtos importados para os produzidos internamente, o que, associado ao aumento das exportações, contribui para o reequilíbrio dos saldos da balança de pagamentos.

Outra das vantagens é a de permitir que o banco central nacional retome a sua função de financiador do défice público, dando ao governo alguma possibilidade utilizar a despesa pública para fazer aumentar a procura agregada e reduzir o desemprego. Naturalmente que esse financiamento monetário do défice terá de ser limitado e realizado com muita prudência, por forma que evite a criação de tensões inflacionistas e a depreciação acentuada da moeda nacional, a qual, ao causar a degradação da balança externa corrente, iria anular o efeito positivo da despesa pública sobre o emprego. Ficando também aberta a possibilidade do setor privado escolher entre depósitos e outras aplicações financeiras em euros ou em moeda nacional, os movimentos especulativos entre as duas moedas seriam menos causadores de saídas de capitais.

Claro que, para que assim aconteça, a emissão de moeda nacional não pode ser excessiva, e os bancos necessitam de dispor de ativos cuja qualidade lhes permita continuarem a recorrer ao refinanciamento do Banco Central Europeu.

Um dos principais problemas deste tipo de sistema monetário está no facto de os agentes económicos de todo o tipo se verem envolvidos numa multiplicidade de contratos denominados nas duas moedas, e de muitos bens terem preços em ambas as moedas, o que, tendo em conta que a taxa de câmbio entre elas varia, torna mais difícil a tomada de decisões de investimento e de consumo.

Por outro lado, aqueles que tiverem maior poder negocial, procurarão impor contratos denominados na moeda que lhes for mais favorável, conforme as circunstâncias. Num contexto em que a moeda nacional tenda a depreciar-se, muitas empresas procurarão, naturalmente, impor a denominação nessa moeda, não apenas dos contratos de trabalho, mas também dos contratos com fornecedores cuja posição seja mais frágil. Quanto aos preços dos produtos vendidos, desejarão, pelo contrário, fixá-los em euros. Quando isto ocorre em mercados exclusivamente voltados para o interior, corresponde a uma mera transferência de riqueza sem qualquer efeito benéfico sobre a procura agregada e sobre o emprego, podendo mesmo ter efeitos negativos.

Em suma, um sistema de dupla moeda, não será o paraíso para as economias com dificuldades em se manterem no euro, e também não será, seguramente, uma solução definitiva para qualquer delas. Pode ser uma solução temporária, tendo em conta a falta duma escapatória para as tensões atualmente existentes. Mas, ainda que para algumas das economias do euro este sistema possa ser o sanatório onde se curam dos males atuais, antes do regresso ao euro, para outras dessas economias ele será, muito provavelmente, a estrada de saída da União Monetária Europeia, parafraseando, em sentido oposto, o título do livro de Padoa-Schioppa, "A Road to Monetary Union in Europe", escrito na esperançosa época da primeira metade dos anos noventa.


* Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Texto escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

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