Opinião
A fé e a superstição romana
O cristianismo, na essência, é revolucionário. A Igreja e as estruturas hierárquicas que a sustentam são profundamente reaccionárias. Basta ler qualquer história da Igreja.
O cristianismo, na essência, é revolucionário. A Igreja e as estruturas hierárquicas que a sustentam são profundamente reaccionárias. Basta ler qualquer história da Igreja, mesmo a de Daniel Rops, para ficarmos esclarecidos sobre a trajectória da instituição, das mais ricas, poderosas e influentes de sempre. Não se trata de fé; a fé é um dom de quem atingiu o estado de graça (Santo Agostinho), e muito respeitável. Trata-se, sim, de superstição, Ou seja: obediência total aos exclusivistas do sacro, e submissão ao dogma.
João Paulo II foi, acaso, um homem admirável, que errou numerosas vezes, por obstinação, convicção, e por acreditar estar a exercer um papel decisivo. Essa contumácia ideológica levou-o a intrometer-se em assuntos sociais, políticos, pessoais, muito para lá das suas incumbências específicas de pastor de almas. E a impor o silêncio aos teólogos, além de os expulsar das suas cátedras, quando aqueles se permitiam estimular o estudo das contradições, das manipulações e das falsidades eclesiásticas. A encíclica Veritatis splendor elucida-nos.
O ensino das religiões é fundamental, na escola contemporânea. Não, apenas, o da religião católica: de todas. E o documentado ensaio do insuspeito Mircea Eliade, «Tratado de História das Religiões» (Asa Editores) deveria ser leitura obrigatória, por valioso, tanto para o crente como para o ateu.
O Papa Wojtyla personificou o Concílio de Trento (1545-1563) contra o Vaticano II (1962-1965). Não há que fugir ou escamotear a verdade dos factos. João XXIII propôs a ideia de interrogação permanente, como método e forma de rejuvenescimento da Igreja. Falar de Deus para revalorização do homem. Logos sobre Theos, não separando a filosofia da teologia. Deus na sua humanidade, não, somente, na sua divindade. João Paulo II não só abandonou esse princípio como o combateu com um denodo muito próximo da obcecação. Viu comunistas nos padres da Teologia da Libertação, e perseguiu-os tenazmente. Os pobres da América Latina deixaram de ter quem os defendesse da oligarquia terratenente e dos ditadores mantidos pelos monopólios norte-americanos. Apoiou-se numa das mais sinistras figuras do Vaticano, o cardeal Ratzinger, mentor da Congregação para a Doutrina da Fé, e favoreceu, pelo mutismo, as manipulações do sistema vaticano. Os textos (e os autores) de teólogos reformadores tão importantes como o suiço Hans Küng, o alemão Rahner, o francês Congar e o holandês de origem belga Schillebeeckx foram implacavelmente perseguidos. Manifesta-se um notório decréscimo do pensamento católico, desde que Wojtyla se sentou na cadeira de Pedro.
Foram escorraçados todos os que, dando continuidade ao Concílio Vaticano II, pretenderam tomar a sério a Reforma, valorizar a Bíblia e interpretá-la, à luz dos conhecimentos modernos, ter em conta o laicado, dialogar com as culturas, enaltecer a teologia popular e reformar internacionalmente a Cúria Romana.
Penso ser moral e intelectualmente honesto lembrar alguns factos que ensombram o pontificado de João Paulo II. Não para minimizar o protagonismo das suas acções e comportamentos. Mas para deplorar os obstáculos que criou ao desenvolvimento harmonioso da ideia cristã, como projecto civilizacional moderno. Perante a sua morte curvamo-nos com respeito e discrição, até para cominar o abjecto oportunismo da assim chamada comunicação social, e, igualmente, para condenar esse lúgubre avejão, constituído pela Cúria, que, ao longo de anos, não preservou o Papa de penosas exposições públicas, que chegaram a ser escabrosas. Como disse, em entrevista Frei Bento Domingues [«Visão», 5. Agosto. 2004]: «Às vezes há uma certa obscenidade em apresentar o Papa na situação de deficiente. Devia haver mais pudor».
O que, averiguadamente, tem faltado à Igreja da omissão e da mentira.
APOSTILA - A minha última crónica, «A Direitona e a Direitinha», suscitou numerosos comentários entre os leitores. Muitos foram agressivos, o que é bom, e pouco argumentativos, o que é mau. Mas não contem comigo para prosear neutro. E repito: escrevam sempre. A todos leio, com a atenção merecida, e o apreço sem reserva que lhes dedico. Esclareço: não sirvo a nenhum amo, não pertenço a nenhum partido, e estou convencido de que jamais escrevi um texto eticamente reprovável. Mas admito ter sido ocasionalmente injusto. Disso me penitencio. Mas não mudo, e não fico mudo. Bem hajam!