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A extinção das freguesias e o défice de Estado

1. Grassa por aí um alijar de culpas em algumas reformas que, a torto, mais do que a direito, invoca os ditames da troika para justificar todas as maldades.

1. Grassa por aí um alijar de culpas em algumas reformas que, a torto, mais do que a direito, invoca os ditames da troika para justificar todas as maldades. É um bocadinho pacóvio e não muito corajoso. A troika não é assim tão tríade secreta e ofensiva da nossa soberania. Cortar 30% das freguesias é apenas um desejo do Governo, não é um juro usurário dos nossos prestamistas. Mas será que o Governo tem razão?

2. Em Portugal, existem 4259 freguesias. A extinção de 30% deverá propiciar uma poupança em custos fixos de apenas 6,5 milhões de euros. O Governo aprovou linhas de crédito para regularizar as dívidas de curto prazo da Madeira (1,5 mil milhões) e dos Municípios (mil milhões). Valerá a pena, por 6,5 milhões, comprar esta guerra?

3. O peso no orçamento é irrisório. Pelo contrário, o efeito multiplicador dos ganhos sociais que as Juntas obtêm com os seus parcos recursos, alivia os orçamentos públicos de mais despesa social. Sabe-se que a extinção poupa muito pouco. Não se sabe quanto é que ela vai custar em danos colaterais.

4. Isto dito, alguma reforma se justifica. Entre as freguesias rurais, urbanas e mistas, há alguns anacronismos gritantes. Mas os casos caricatos de Juntas a mais, de população a menos , ou de inadequação às novas dinâmicas urbanas de mobilidade e desmaterialização, não justificam o rolo compressor. A rede nacional de identidades criadas em torno das freguesias não é panfletária e caciqueira: é nela que assenta a prestação de serviços de proximidades essenciais. Há, porém, muitos políticos e técnicos a opinarem sobre o que não conhecem (o relatório da OCDE até se reporta a "paróquias"!…).

5. Lisboa é eloquente neste processo. Bom senso, maturidade cívica, liderança esclarecida e consenso. O novo mapa foi desenhado sem dramas. Não fora a queirosiana e portuguesíssima história de ter sido necessário um veto presidencial para corrigir uma gralha nos mapas (!) e teria sido exemplar.

6. A lei 22/2012 adoptou uma matriz quantitativa com base na densidade e no número de habitantes e impôs metas de redução. A versão final contém cláusulas que permitem acomodar particularidades. Mas manteve o cariz impositivo da extinção, alguns mistérios (quais são os "lugares urbanos" com mais de 2000 habitantes?) e o prato de lentilhas de mais 15% no FFF.

7. As freguesias prestam serviços pouco sexy e que trazem poucas prebendas pessoais, mas as nossas urbes e as nossas vidas seriam bem mais penosas sem eles (canídeos e gatinhos, cemitérios, sanitários públicos ou certidões). São competentes e muito, na gestão de parques infantis, dos baldios, dos processos eleitorais, no apoio que dão às escolas, nas múltiplas iniciativas de integração social para a terceira idade e para os jovens, no desporto e cuidados de saúde, na formação. Além das competências que os Municípios delegarem.

8. São a primeira frente de embate e de combate à desvalia social. Estão bem organizadas. Velam por nós e desvelam-se nisso. Têm a melhor avaliação de desempenho pelos seus "fregueses". Nas inóspitas serranias beirãs ou nas planícies do além Tejo despovoado elas são imprescindíveis. A análise quantitativa não pode ser o alfa e o ómega do ordenamento do território. Uma boa reforma precisa de uma matriz complementar de cidadania.

9. O que não precisa é de atribuir competências esdrúxulas que, manifestamente, seria um absurdo as freguesias exercerem. Na verdade, a lei prevê que possam vir a licenciar actividades económicas (!). Como assim? Alguém parou para pensar? Então, por um lado, temos a dinâmica do "licenciamento zero", mas, por outro lado, vamos criar um novo poder de decisão ou consulta, desqualificado tecnicamente e potenciando delongas, promiscuidades, contrapartidas e traficâncias várias?

10. A Administração Local precisava de uma reforma. Não, de algumas vertentes desta. Paulo Portas tinha, aliás, uma ideia virtuosa e menos fracturante: a de agregar apenas os órgãos das freguesias, sem mexer nas suas fronteiras. Poupava-se mais financeiramente e perdia-se menos, socialmente. Mas Portas anda muito fora de portas. E esta é uma lei Relvas. O País tem saudades do artigo que Paulo teria escrito no "Independente" sobre o caso Relvas e sobre esta lei.

11. A maioria dos Municípios ainda não reorganizou as suas freguesias como a lei impõe. Nenhuns, ainda, decidiram fundir-se, como ela permite. Outra lei falhada ou meramente inútil? Importa agora conhecer as propostas dos partidos sobre a lei eleitoral, a gestão e o financiamento. O que se conhece de substantivo não é bom e as cerimónias pré-estivais entre o PS e o PSD auguram o pior. Esperemos que as férias do país político, cá dentro, tragam mais país real para dentro das leis.


Alberto Souto de Miranda é docente da Faculdade de Direito de Lisboa

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