Opinião
A direitona e a direitinha
As eleições de 20 de Fevereiro lançaram a Direita em pungente desorientação. Perder assim o poder, ela, que se julga ungida de direito divino, é desesperante, convenhamos!
Não há Direitas. Há só uma: a sua natureza, os seus objectivos e sentido fazem-na pertença de um grupo, antes de se pertencer a si mesma, com expressões sociais particulares. Essa Direita não se permite, amiúde, ter princípios, porquanto é a combinação de elementos modulares, que agem através de reflexos políticos. Não há Direita dos valores e Direita dos interesses: a sua identidade corresponde a uma teia reticular que controla os centros de decisão.
Antes de ser uma cultura, a Direita é uma concentração de poderes, com interesses caracterizados por uma ovípara ganância e por uma desmedida sede de domínio, de autoridade e de jurisdição. Não digo nada de novo. Mas talvez seja importante referir estas evidências, numa altura em que se fala sobre a «refundação» da Direita, como se se tratasse da mais alta incarnação possível da essência humana.
O propósito esteve ausente da discussão durante anos. A hecatombe de Fevereiro coincide com dois centenários: o de Sartre e o de Aron, pretexto para a ressurreição de uma polémica, ainda hoje com um certo sentido, cooptada para as disfunções da Direita portuguesa. Quatro artigos fundamentais assinalaram as efemérides: um, magnífico pelas propostas de reflexão, de António Rêgo Chaves, publicado neste jornal; dois outros, de Vasco Pulido Valente e de Eduardo Prado Coelho, no «Público», e o quarto, de Vicente Jorge Silva, no «Diário de Notícias». O resto tratou-se de escorrências, frioleiras que apenas trouxeram à luz o avatar tardio de quem não possui ideias de seu e escreve por verbete.
Diga-se o que se disser, Aron não teve a importância de Sartre. Este tomou decisões e não se esquivou a tomar partido. O risco era imenso. Não hesitou sequer um instante. Aron compreendeu as regras de um jogo unilateral: não lutou contra ele, a sua ideia foi a de salvar o que seria possível no sistema capitalista. Na dicotomia intelectual e ética entre Direita e Esquerda, não foi Aron o ganhador: fomos nós os perdedores. Historicamente, Aron ganhou quê? Um dos homens que formou a geração a que pertenço dizia: «A luta entre eles seria a de escolher entre «Temps Modernes» e «Le Monde» e «Le Figaro» e «L’Aurore».
A Direita continua a pretender dar uma inflexão a um processo que a ultrapassa. Recusa aceitar que a responsabilidade política deve prolongar-se em responsabilidade penal, e recorre a um absolutismo intelectual que a tem limitado a afirmações tão dogmáticas quanto anacrónicas. Acredita que o «sistema» resolve todos os problemas e todas as crises, porque é manifestamente incapaz de propor outras soluções que não aquelas que fizeram fé desde há decénios.
Os preopinantes de Direita que, ultimamente, têm escrito sobre a «refundação», são desesperantemente banais. Nada de novo, de original ou de confrontação emerge daquela gente. Nem sequer a provocação, sempre estimulante, quando conforme às ideias. Somente a circunstancial beligerância, transformada em ovante herança do conservadorismo mais retrógrado. Até Maria José Nogueira Pinto, de hábito a raciocinar com elegância, instigação e ironia, até ela reabilitou antiquadas fórmulas de enunciação.
A Direita está mais interessada, por carência de propostas, na rivalidade assassina entre si mesma, do que em realizar o debate que a sua debilidade exige - mas não prenuncia. E, no entanto, há dezenas de questões que intimam à urgência do esclarecimento e da discussão. Porém, ela está mais propensa a criticar, superficialmente, aliás, as decisões do Governo, do que em dilucidar as suas próprias desorientações. A fraqueza da Direita não é um contratempo que só a ela diz respeito. Tudo o que à Direita toca, toca, igualmente, à Esquerda. Uma só existe com a outra, e resulta de cada uma delas.
O que a Direita tem escrito sobre a Direita é um bocejo, uma tolice, uma inutilidade. Ou o absurdo e abstruso regresso da velha Direitona, mascarada de Direitinha.