Opinião
A desavença
Segundo o pentagrama de Maquiavel, em política não há moral, não há gratidão, não há amizade, não há escrúpulos, não há carácter. Entre nós, estes conceitos foram absorvidos até à exaustão. Uma habilidosa acumulação das propostas do conselheiro do Príncip
Segundo o pentagrama de Maquiavel, em política não há moral, não há gratidão, não há amizade, não há escrúpulos, não há carácter. Entre nós, estes conceitos foram absorvidos até à exaustão. Uma habilidosa acumulação das propostas do conselheiro do Príncipe tornou-se, em Portugal, num exercício particularmente esmerado – e, visivelmente, compensador.
A honestidade, a integridade, a rectidão são consideradas anacronismos e, ocasionalmente, premiadas. A honra pode, de um momento para o outro, converter-se num gravíssimo delito. Afobadas, as pessoas correm de um lado para o outro, traem, praticam as tropelias mais soezes, constituem-se em uma espécie de seitas que, mesmo assim, se entredevoram.
A quezília, para ainda não dizer: a desavença entre Alegre e Soares e Soares e Alegre ilustra, violentamente, o retrato da sociedade portuguesa actual. Deixa muita gente perplexa pelos silêncios, pelas omissões e, sobretudo, pela inexplicável carência de um entendimento mais livre e menos académico, justificável pela natureza das relações que envolvia os dois homens.
A ferida aberta em ambos não cicatrizará, até porque nada naquela amizade, pública e reiteradamente expressa, sugeria artifício, oportunismo ou malícia. Há, neste triste imbróglio, um responsável nuclear: José Sócrates, cujo comportamento prescinde da criação ou da invenção de adjectivos: o seu comportamento integra-se no pentagrama de Maquiavel. O homem detesta tanto Alegre quanto Soares. Prefere Cavaco. Está mais na sua linha de conta. Insistia obsessivamente em Guterres, sabendo que o empurrava para uma derrota humilhante. O eleitor pode ser leviano e imprevisível; porém, nisto de António Guterres – nem o retrato do cavalheiro quer ver. Fugiu a sete pés quando foi preciso resolver e decidir. Ninguém lhe perdoa. Agora, anda pelo mundo a espalhar fé, esperança e caridade.
A seguir, emergiram os nomes de outros putativos candidatos: o génio da garrafa, dito António Vitorino, e, até, o ditoso socialista Diogo Freitas do Amaral. A tramóia parecia colher efeitos generosos. Nada disso. A desconfiança generalizou-se e o alvoroço atingiu graves e austeros comentadores do óbvio, tais como o moroso democrata José Carlos de Vasconcelos, cujos textos são seráficos baptismos do inefável.
A Esquerda está exaurida! A Esquerda não possui candidato credível! A Esquerda já não é! As fogosas exclamações correspondiam a verdadeiro e comovido carinho dos editorialistas. Em almoços íntimos, amistosos, sorridentes e singelos, grupos de conspiradores, inclinados para um cozido à portuguesa, no Solar dos Presuntos, ou para uma açorda de cação, no Solar do Nunes, deglutiam as iguarias e ponderavam acerca do elevado problema – entre um discreto arroto e um jubiloso gole de Pêra Manca.
Evangelizavam a situação, assaltados pelo penoso sentimento de que o imortal Cavaco Silva era imbatível, inexorável e inevitável. Já o escrevi; repito: A amigos de peito, Soares confessou-se preocupado com as perspectivas. O verdete nada furtivo e jamais atenuado pelo homem que veio de Boliqueime, deixava-o, com o passar dos dias, num estado de irritação, acrescido pelo silêncio do "outro". Eis o que o fez mover, após manifestar surpresa pelas ambiguidades das proclamações "do Manel".
Nenhum dos candidatos, nenhum, aporta algo de novo ao discurso político e ideológico. Se a idade de Soares serve de solfejo a trompetistas da Direita, a verdade é que Cavaco não é nenhum bebé Nestlé, nem Alegre, nem Jerónimo ou mesmo Louçã são embalados pelos donaires da mocidade. De uma forma ou de outra, eles renunciaram às virtudes éticas da verdade, favorecendo as estratégias dos interesses momentâneos.
Evidentemente, o caso mais doloroso é aquele que mais salta à vista. Em nome de quê, e por quem, uma amizade foi destruída? Lá vem o Maquiavel a explicar e, até, a justificar. Valeu a pena? Este exemplo, respaldado em razões que se me afiguram absurdas, corresponde ao estado moral do Portugal dos nossos dias. Não me concilio com nenhum dos presentes – e muito menos com o falso ausente.
A demonstração desta pública borrasca entre dois amigos caracteriza uma derrota que se não divide entre ideologias. À Direita e à Esquerda, o sentimento de repulsa não se tolda em declinações de cinismo. Quando falo em Direita, falo naqueles que, em seu nome, defendem valores, princípios e padrões – o mesmo aplicando à Esquerda. Sem carregar no maniqueísmo que tem mantido a dicotomia segundo a qual eu sou melhor do que aqueloutro.