Opinião
[457.] Depuralina, Roca
De uma metáfora que faz da mulher um sofá passámos para uma metáfora que transforma os móveis da casa de banho em mulher. São metamorfoses sinistras, mas que a publicidade consegue que aceitemos como normais como o protagonista da novela de Kafka quando se transforma em mosca.
Na Primavera chegam os anúncios de produtos e serviços prometendo a perda de quilos, gorduras e celulite. Desenvolvem nas mulheres a fixação psicológica de que no Verão o corpo tem de estar diferente do resto do ano, como se relaxamento e magreza tivessem um ciclo anual.
Este ano, a campanha mais vistosa tem sido a dum "novo creme anticelulite" da marca Depuralina ilustrado por uma ou duas imagens de um sofá. No anúncio de imagem fixa, o sofá tem enormes botões na fotografia de cima e nenhum botão na foto de baixo, mostrando apenas a embalagem do produto em cima do tecido liso do sofá. "Só ficam os resultados", diz o slogan.
Quando vi o anúncio pela primeira vez, num mupi ao longe, pensei tratar-se de mais uma de tantas campanhas de marcas de sofás. Depois, ao ver a embalagem em cima do móvel em baixo, pensei tratar-se dum produto para lavar sofás. Só ao aproximar-me percebi tratar-se dum produto prometendo remover a celulite. Há nele duas metáforas. Uma é a que transforma a celulite em botões de sofás. Pela segunda metáfora, as mulheres são tratadas como móveis. Aplica-se-lhes um produto na pele do "móvel" e a celulite desaparece. O anúncio de TV também mostra o processo, desaparecendo progressivamente os botões da pele dos sofás.
Transformar as mulheres em sofás é grosseiro, mas o procedimento compreende-se por duas razões. Primeiro, os anúncios de celulite procedem ao exagero brutal típico da publicidade, transformando-a em enormes botões, ou, como noutra marca, excessos de pele que se podem prender com molas da roupa (em vez de móveis, as mulheres são tratadas como estendal: sempre metáforas de e para "donas de casa").
Segundo, os "criativos" desta campanha de Depuralina copiaram uma campanha de outro creme, aqui há uns anos, em que uma montagem fotográfica transformava a pele da coxa duma mulher em pele de sofá com botões. O plágio da ideia é evidente, mas com uma enorme vantagem: esse anúncio antigo, de uma marca que agora não consigo recordar, era nojento. Os plagiadores de Depuralina, fazendo da mulher um móvel, ao menos fizeram desaparecer o nojo da própria pele da mulher feita sofá.
A mania do emagrecimento e do tratamento primaveril da pele aparece num outro anúncio de forma surpreendente e, por isso, interpeladora: a Roca mostra-nos uma estafada foto duma mulher, entre os ombros e o beiço, com as mãos na cara, como se verificasse a macieza da pele. A imagem, óbvia nos anúncios de produtos para a pele feminina, ilustra aqui o slogan "tratamento anti-envelhecimento Roca", o "tratamento de beleza que melhor cuida o seu espaço de banho". Fazendo mudanças no mobiliário da casa de banho, diz o texto à leitora, "sinta-se cinco anos mais jovem com o tratamento anti-envelhecimento Roca". Ao usar a linguagem visual dos anúncios de cremes para publicitar retretes e afins, este reclame desfaz e recria o próprio efeito de verosimilhança da publicidade.
E, assim, de uma metáfora que faz da mulher um sofá passámos para uma metáfora que transforma os móveis da casa de banho em mulher. São metamorfoses sinistras, mas que a publicidade consegue que aceitemos como normais como o protagonista da novela de Kafka quando se transforma em mosca. Neste sentido, esta publicidade é, digamos assim, kafkiana.
etc@netcabo.pt
Este ano, a campanha mais vistosa tem sido a dum "novo creme anticelulite" da marca Depuralina ilustrado por uma ou duas imagens de um sofá. No anúncio de imagem fixa, o sofá tem enormes botões na fotografia de cima e nenhum botão na foto de baixo, mostrando apenas a embalagem do produto em cima do tecido liso do sofá. "Só ficam os resultados", diz o slogan.
Transformar as mulheres em sofás é grosseiro, mas o procedimento compreende-se por duas razões. Primeiro, os anúncios de celulite procedem ao exagero brutal típico da publicidade, transformando-a em enormes botões, ou, como noutra marca, excessos de pele que se podem prender com molas da roupa (em vez de móveis, as mulheres são tratadas como estendal: sempre metáforas de e para "donas de casa").
Segundo, os "criativos" desta campanha de Depuralina copiaram uma campanha de outro creme, aqui há uns anos, em que uma montagem fotográfica transformava a pele da coxa duma mulher em pele de sofá com botões. O plágio da ideia é evidente, mas com uma enorme vantagem: esse anúncio antigo, de uma marca que agora não consigo recordar, era nojento. Os plagiadores de Depuralina, fazendo da mulher um móvel, ao menos fizeram desaparecer o nojo da própria pele da mulher feita sofá.
A mania do emagrecimento e do tratamento primaveril da pele aparece num outro anúncio de forma surpreendente e, por isso, interpeladora: a Roca mostra-nos uma estafada foto duma mulher, entre os ombros e o beiço, com as mãos na cara, como se verificasse a macieza da pele. A imagem, óbvia nos anúncios de produtos para a pele feminina, ilustra aqui o slogan "tratamento anti-envelhecimento Roca", o "tratamento de beleza que melhor cuida o seu espaço de banho". Fazendo mudanças no mobiliário da casa de banho, diz o texto à leitora, "sinta-se cinco anos mais jovem com o tratamento anti-envelhecimento Roca". Ao usar a linguagem visual dos anúncios de cremes para publicitar retretes e afins, este reclame desfaz e recria o próprio efeito de verosimilhança da publicidade.
E, assim, de uma metáfora que faz da mulher um sofá passámos para uma metáfora que transforma os móveis da casa de banho em mulher. São metamorfoses sinistras, mas que a publicidade consegue que aceitemos como normais como o protagonista da novela de Kafka quando se transforma em mosca. Neste sentido, esta publicidade é, digamos assim, kafkiana.
etc@netcabo.pt
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