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[366.] Alfa Romeo

Giulietta, o novo modelo Alfa Romeo, é protagonizado por Uma Thurman. No anúncio televisivo, ela surge, maravilhosa, tantos ou mais segundos do que o próprio carro e em reclames de imprensa e em "billboards" espalhados por ruas e estradas, ocupa tanto ou mais espaço do que o automóvel.

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Nos anúncios de imprensa, a actriz aparece quase irreconhecível pelo tratamento fotográfico, mas o que mais me interessa referir é o seu contributo ficcional para a campanha: a frase "Eu sou Giulietta" é a chave de acesso a esta publicidade.


A versão vídeo da campanha assenta na personificação completa do carro com uma pessoa. A actriz americana foi escolhida pela sua notoriedade e porque nos seus filmes com Tarantino representou duas características que interessava juntar ao carro, beleza e força, a que a campanha juntou outras duas características do automóvel, pureza (menos poluição) e tecnologia. Duas características da mulher e duas do carro, reunidas. A simbiose prossegue na coincidência do nome do modelo automóvel com um nome de mulher e de personagem máxima da ficção: Giulietta, ou Julieta.



Todavia, a ligação só se completa na mente do observador da campanha: se a mulher é associada à "máquina" (a palavra italiana para um bom carro), a unidade de dois em um obtém-se juntando o nome dado ao modelo com o nome da própria marca: Romeo e Giuletta.



Os publicitários não podem ter ou não gostam de ambiguidade artística nos anúncios, para não desestabilizar o observador. Daí que, sem terem mostrado a relação entre (Alfa) Romeo e Giulietta, o que tornaria a campanha tão óbvia como a de um detergente, juntaram uma frase célebre e nome do seu autor, William Shakespeare, o mesmo que imortalizou o mito de Romeu e Julieta: "Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos."



Eis uma nova unidade, nova simbiose, entre quem vê o anúncio e o objecto anunciado: Giulietta, o carro, é um sonho, mas o observador também é feito da mesma matéria que os sonhos, segundo Shakespeare.



O anúncio televisivo original termina com uma lição de moral, como tanta publicidade: por baixo do nome do carro, a frase "Sem coração, seríamos apenas máquinas" é a confirmação final da ligação entre razão e emoção, sempre tão invocada nos anúncios de automóveis. O observador não pode ver o carro "apenas" como uma máquina. Por outras palavras, precisa do impulso emocional para comprar a máquina.



Em português, a campanha não funciona com esta perfeição porque as palavras carro e automóvel são masculino e não há uma associação tão rápida como em italiano a "máquina". Daí que resulte uma dissociação entre a Julieta mulher/Uma Thurman e Giulietta/o carro. A personificação do automóvel na mulher não é completa como em italiano e noutras línguas.



A frase de Shakespeare citada no anúncio (e adaptada do plural para o singular no anúncio de imprensa, passando de "somos feitos" para "sou feita da mesma matéria"), não consta em "Romeu e Julieta", mas na peça "A Tempestade". Eis a frase completa do mágico Próspero: "Somos feitos da matéria dos sonhos e a nossa curta vida é envolta com o sono."



A segunda parte da frase não interessava ao anúncio, pois acrescenta ao fascínio dos sonhos de que somos feitos a lembrança da mortalidade e de como a vida é breve como um sonho. Essa simbiose da curteza dos sonhos, tão adequada à brevidade dos bens de consumo na sociedade actual, não convinha recordar num anúncio de um bem de consumo.




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