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[210.] Coca-Cola: 1977-2007

Separados por 30 anos, o primeiro e o mais recente anúncio da Coca-Cola em Portugal impressionam pelas semelhanças e pelas diferenças subtis. Em 1977, a marca fazia valer o mito que a envolvia como bebida fetiche dos Estados Unidos da América.

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Proibida por Salazar, o fascista anti-americano, e indesejada pelos comunistas, os sovietistas anti-americanos, a Coca-Cola chegava a Portugal, incrivelmente, no âmbito da normalização democrática depois do 25 de Abril e do PREC. Tal é a força do símbolos! Uma simples bebida, mistura de água com caramelo ou não sei quê, transformada em símbolo de conflitos políticos e geoestratégicos!

Não admira que o anúncio de 1977 se limite a apresentar a garrafa com a frase “... a tal!”, que faz valer o mito em que se transformara em Portugal ao longo dos anos... e ao mesmo tempo evita entrar em explicações: apenas “a tal”. Nem mesmo se usa um substantivo como bebida ou refrigerante. Apenas esta palavra – tal –, extraordinário adjectivo multi-usos e bastante indefinido, sem exprimir qual a qualidade a que se refere nem o respectivo grau. Quando o anúncio dizia “a tal” cabia por inteiro ao universo cultural e ideológico do observador preencher a frase com um substantivo e extrair um grau ao adjectivo.

A simplicidade do anúncio de 1977 impressiona à primeira vista. Mas à segunda, vê-se que além da mensagem “Coca-Cola, a tal... já está em Portugal”, o anúncio garante o portuguesismo do recém-chegado ícone do “imperialismo yankee” ao informar que a bebida é “engarrafada em Lisboa” – sim, em Lisboa, a capital de Portugal, não no Texas! – e mais ainda, é engarrafada por uma “sociedade portuguesa”! Sim, em Portugal e por portugueses! Tanto portuguesismo postiço visava acalmar algum anti-americano mais irritadiço.

O reclame tem uma dimensão pedagógica sobre o consumo da bebida: deve beber-se muito fresca. A garrafa apresenta-se com os pingos da condensação e envolta em muito gelo. Os “velhos” como eu sabem o que suportámos durante anos para conseguir beber bebidas frescas na quase totalidade dos cafés, bares ou restaurantes. Então com gelo era quase impossível. Como a Coca-Cola é intolerável à temperatura ambiente, esta pedagogia visava sugerir aos consumidores a forma “correcta” de a beber e de a pedir nos locais públicos: com gelo. Foi, essa sim, uma luta difícil dos consumidores, uma luta de décadas: a luta por um melhor atendimento no serviço aos clientes. O desenvolvimento e a democratização (que implicam tratar bem as pessoas) também passavam por aí. Visto à distância, o “tal” gelo no anúncio da Coca-Cola de 1977 pode assim significar não só o arrefecimento do Verão Quente como um índice da necessidade do melhor atendimento aos clientes.

Três décadas depois, impressiona a perenidade das imagens da marca, símbolos tão fortes que se mantiveram. Quase tudo na mesma em 2007: a garrafa, a bebida, o logótipo, a cor, a aparente simplicidade das frases. Ficou o americanismo. Desapareceram os cuidados “nacionalistas”, porém. Na TV, a publicidade propõe-nos Coca-Cola a acompanhar sardinhas assadas, um sacrilégio que em 1977 teria provocado uma guerra civil! No anúncio de imprensa o slogan vem primeiro em inglês e só por baixo em português. Se tal é vulgar em tanta publicidade, aborrece que a marca optasse pelo inglês no anúncio feito para lembrar os seus 30 anos em Portugal: “30 years on the Coca-cola side of our life”, traduzido livremente, em letra miúda, por “30 anos do mundo Coca-Cola em Portugal”. Ambas as frases são curtas mas nada simples: o “mundo Coca-Cola” e o “lado Coca-Cola da nossa vida” são um conjunto geral de emoções e ideias transmitidas nos reclames há décadas: alegria, despreocupação, ternura, sorriso, Natal, amizade, sensações positivas. Nada que tenha muito a ver com uma mistura de água com caramelo ou não sei quê, mas tudo a ver com o que o observador deseja para si. Com mais ou menos geoestratégia, caramelo, imperialismo ou anti-imperialismo, vamos sempre dar ao mesmo final: o que a gente quer é ser feliz, e a publicidade induz-nos a pensar que a consumir chegaremos lá. Não é só, mas também. O que entra pela boca abaixo entra igualmente – antes, durante e depois – pelo cérebro acima.

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