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Venha a nós o vosso dinheiro

A fé dos nossos governantes na sua própria capacidade de dirigir a economia deste país é inquebrantável.

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Como cidadão e como interessado em saber o que o Programa de Resiliência e Recuperação (PRR) pode trazer de bom ao país, dediquei a semana passada uma manhã à leitura da sua síntese divulgada pelo Governo a 15 de fevereiro para efeitos de consulta pública. Não com a ideia de responder à consulta pública, teria de lhe dedicar mais tempo nesse caso, pois quando o Governo anunciou que pretendia apresentar a versão final em Bruxelas no início de março e que tínhamos até ao fim de fevereiro para responder à consulta, ficou clara na minha mente a inutilidade de qualquer resposta.

Lendo o documento, descobri como, na verdade, ele é simples na sua complexidade: há basicamente três maneiras de gastar o dinheiro vindo da UE.

A primeira é gastá-lo o próprio Estado consigo mesmo: são, por exemplo, 400 milhões (e os números que cito são arredondados, pois a precisão numérica não é aqui o relevante) para sustentabilidade das finanças públicas, são 800 milhões para modernizar a administração pública, são 260 milhões para a administração da justiça.

A segunda é o Estado gastá-lo em concursos públicos para comprar infraestruturas e os bens de equipamento do próprio Estado: para as escolas vão 710 milhões, 560 milhões para estradas, perto de mil milhões para metros e metros de superfície em Lisboa e Porto, mil milhões para habitação social, mais uns milhões para novos centros de saúde (não se fala em novos hospitais, o que depois do que assistimos com a pandemia, é estranho). E vão ainda muitos milhões dispersos ao longo do PRR em equipar outros serviços para que o Estado possa dar as chamadas respostas sociais, cujas necessidades subjacentes não discutimos na maioria dos casos, embora a eficiência das ditas respostas seja muito duvidosa e burocrática: melhor seria entregar o dinheiro a quem dele precisa sem burocracias.

A terceira maneira de gastar o dinheiro da UE toma forma de planos, agendas, programas para dirigir a economia no sentido em que o Estado considera hoje ser o do futuro: industrialização, digitalização, economia verde. E, pela mão do Banco Português de Fomento (BPF) e do IAPMEI, lançam-se 1.600 milhões para uma espécie de Portugal 21-26 à pressa, cujos efeitos serão tão efémeros como os do Portugal 2020 e de outros que o antecederam - que não tiraram o país do seu atraso estrutural, fomentaram a falta de competitividade das empresas, criando condições para estas sobreviverem com base em apoios públicos e para depois morrerem na falta deles.

Descobri finalmente, conforme ia lendo o documento, que a fé dos nossos governantes na sua própria capacidade de dirigir a economia deste país é inquebrantável, dogma que infelizmente beneficia tantos que não deviam. Neste contexto, compreendi que não haverá outras maneiras possíveis de gastar todo este dinheiro para além das que constam do PRR. Ou, talvez haja outras, mas só serão admitidas variantes das previstas, as quais não afetarão os resultados, pelo que não sei se valerá a pena mencionar verdadeiras alternativas.

Para o país seria melhor que se usassem estes fundos numa política fiscal de desagravamento em função de investimentos (que até podem ser nas mesmas áreas-chave que o PRR escolheu como pilares) ou, objetivamente, em função do impacto da pandemia, da criação de novos empregos e do fator exportação. Seria em qualquer caso preferível retirar a escolha dos beneficiários à burocracia do IAPMEI e do BPF e entregá-la ao mérito empresarial. Era igualmente melhor para Portugal uma política de redução deste défice que carregamos para as gerações futuras (agora mais, iludidos com as taxas de juros negativas), em vez de insistirmos no cimento com para cima de três mil milhões em obras públicas. Mas o país real vai ficar contente com os empregos temporários da construção civil e das ações de formação, com os subsídios que mesmo tarde e a más horas lhes cheguem da mão do Estado, com as pequenas melhorias que vejam nos equipamentos escolares, nos hospitais, nos transportes e talvez nos meios de combate aos incêndios (embora aparentemente não seja desta que compramos os meios aéreos de que precisamos, pois os 92 milhões afetos aos novos radares de dupla polarização e aos muitos equipamentos mencionados no PRR certamente não chegam).

Por tudo isto, fui almoçar tranquilo naquele dia depois de uma manhã de leitura, convicto de que andou bem o Governo em dar-nos 15 dias para pensar o PRR e em dar-se a si próprio uma semana ou duas para ignorar as nossas reflexões sobre ele.


O presente artigo reflete apenas a opinião pessoal do seu autor, não vinculando a Macedo Vitorino & Associados.
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