Opinião
As lições que não deveremos esquecer…
O fim do estado de emergência fez renascer a esperança de retorno à normalidade possível.
O fim do estado de emergência fez renascer a esperança de retorno à normalidade possível. Multiplicam-se as aguardadas notícias de que estamos a vencer, em conjunto, a batalha contra a pandemia. Assistimos, a cada dia, ao aumento da atividade social e económica. Pesem embora as boas notícias, vão-se multiplicando de forma persistente as referências à utilização de mecanismos de monitorização digital da população.
A Europa acolheu de forma sobranceira os relatos relativos às medidas implementadas na China, Coreia do Sul ou em Singapura. A distância cultural, física e no caso da China, política, fizeram-nos duvidar que as mesmas pudessem chegar à Europa e desvalorizar na nossa vida em sociedade. Contudo e de forma inexorável a implementação de medidas análogas na Europa surgiu pela primeira vez em março, na Polónia, tendo-se seguido a Alemanha, a Áustria e a Noruega.
França, historicamente resistente à implementação de medidas restritivas dos direitos fundamentais, parece ter também aderido ao movimento, quando o Presidente Emmanuel Macron anunciou estar ponderar a implementação de uma aplicação para localizar pessoas infetadas, controlando os seus movimentos e alertando os restantes da sua proximidade.
Em Portugal, o primeiro-ministro, António Costa, admitiu, em recente entrevista, a possibilidade da Direção-Geral da Saúde ter acesso a uma ferramenta de identificação de contactos (contact tracing). Subsequentemente, a Fundação para a Ciência e Tecnologia apresentou o projeto "monitor4COVID19", o qual constitui uma aplicação para telemóvel que permitirá o envio de alertas caso um individuo tenha estado em contacto com alguém infetado com a Covid-19. À semelhança da pandemia, as tecnologias de controlo digital da população parecem mesmo ter vindo para ficar.
O Comité Europeu para a Proteção de Dados tem vindo a desempenhar uma importante tarefa ao definir os critérios que deverão presidir ao desenvolvimento e funcionamento das ferramentas de monitorização digital. Na sua orientação de abril de 2020, realçou o facto de todas as tecnologias possuírem limitações técnicas e funcionais intrínsecas, motivo pelo qual deverão ser sempre consideradas como meios auxiliares e não soluções em si mesmo. Sublinhou, ainda, que não deverá ser necessário escolher entre uma resposta eficiente à crise atual e a proteção dos direitos fundamentais, pois ambos poderão ser alcançados.
As opções que o Governo terá de efetuar afetarão seguramente a vida em sociedade de forma persistente e duradoura. Deverão ser observados, de forma rigorosa e competente, os riscos resultantes da implementação de tecnologias que recolhem dados pessoais de forma massiva e permanente. Igualmente deverão ser implementados os mecanismos técnicos e organizativos necessários à adequada proteção da privacidade e da reserva da vida privada dos portugueses. A privacidade é essencial para garantir a confiança. E as medidas deverão privilegiar a capacitação no combate ao contexto pandémico, em detrimento do controlo, estigmatização ou repressão.
A polémica referente à medição da temperatura dos trabalhadores, que tem vindo a opor Governo e CNPD, deverá constituir um importante alerta para a necessidade de não se cometerem erros e se privilegiarem soluções concertadas. Em momento algum nos poderemos abstrair de que a utilização de tecnologias de monitorização, conquanto importantes para controlo da propagação do vírus, potencia a erosão dos direitos fundamentais e propicia a criação de condições funcionais para um efetivo controlo permanente da população.
O dilema exposto por George Orwell na sua obra distópica 1984 parece, hoje, mais atual que nunca. Abraçaremos a visão utópica de que as tecnologias apenas nos vão permitir viver melhor e responder às ameaças que enfrentamos ou, ao invés, consideraremos que constituirão elementos da "arquitetura de opressão" nas palavras de Edward Snowden.