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[103.] Publicidade dentro dos conteúdos

Em 1966, quando se estreou na Broadway de Nova York o musical Sweet Charity de Neil Simon, um empregado de mesa numa cena perguntava a um cliente: «Um whiskey duplo?»

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Na actual reposição no Al Hirschfeld Theater, o empregado de mesa pergunta: «Gran Centenario, the tequilla?» A publicidade dentro dos conteúdos chegou ao teatro musical e, também, aos jogos de vídeo, uma indústria criativa muito cara e demorada, que obriga a grandes investimentos, tal como a televisão ou o cinema.

A publicidade colocada no seio dos conteúdos – o «product placement» – parece dar razão aos autores que previram que um dia a publicidade não se distinguirá da informação e dos outros conteúdos. A tendência é para que aumente este tipo de publicidade, que tem diversos defeitos: não é clara; não se distingue dos aspectos criativos; pode interferir, e interfere, na criatividade; também não é clara na contabilidade dos operadores de TV e outros; não é clara nos preços; não é clara em quem tem direito a «royalties» (os actores que entram nas cenas com «product placement»? Os realizadores e produtores? Os argumentistas?)

Há duas semanas participei numa sessão de um seminário do Instituto do Consumidor e do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade em que abordou este tema. A preocupação existe em vários sectores, mas os participantes puderam verificar duas atitudes: de um lado, pessoas do lado do consumidor que adoptam atitudes radicais e desajustadas da evolução dos media e das formas como estes são vividos pelas pessoas; do outro, canais televisivos que aproveitam o laxismo na regulação e verificação de aplicação das desactualizadas leis existentes e atentam contra a ética da inserção publicitária.

Na verdade, a colocação de produtos nos conteúdos televisivos não respeita as regras mínimas de bom-senso, clareza e respeito pela verdade ética e estética dos conteúdos que deveriam existir nesta matéria: as colocações interferem, e de que maneira, nos argumentos; são enganadoras; interferem na realização, mesmo em programas de suposto serviço público, como «O Diário de Sofia» ou os concursos. A colocação de produtos dentro de conteúdos é inevitável na sociedade capitalistamoderna, na qual se verifica umencharcamento da paisagem pública e privada com mensagens publicitárias, desde as ruas até aos nossos corpos, como os logótipos de marcas têxteis nas nossas camisas, gravatas, pólos, malas, etc., ou até slogans e produtos em t-shirts. Além disso, a pulverização dosmedia e o afastamento dos consumidores das mensagens publicitárias a que podem escapar, pelo «zapping», pelo «zipping» ou pela reorientação de escolhas mediáticas, leva o mundo da publicidade a procurar situações a que os consumidores não podem mesmo fugir. Julgo que isto mostra o quanto está errada a concepção da publicidade que se impõe a «vítimas» num mundo de audiências mais conscientes e alfabetizadas em vez de se impor pela qualidade e interesse da mensagem publicitária.

Todavia, se os anunciantes a praticam é porque vêem resultados nas vendas. É precisamente por que o «product placement» é inevitável que se tornam mais necessárias uma regulação e uma fiscalização eficazes à publicidade dentro dos conteúdos. A auto-regulação é uma miragem, porque se fosse possível já existia. Não se pode dizer que haverá auto-regulação no futuro quando é precisamente hoje, quando a regulação é ineficaz, que ela deveria já existir. Além disso, sendo o chamado serviço público de televisão um serviço em primeiro lugar comercial, a RTP não serve de exemplo para regular. Basta ver os produtos em programas da RTP e basta ver que só por obrigação do governo a RTP terá provedor dos espectadores. Daí que a regulação seja uma urgência.

É triste o tempo que as coisas demoram a fazer-se em Portugal. A substituição da Alta Autoridade por um instituto mais ágil e adaptado aos media actuais já poderia ter ocorrido há anos, mas só agora acontecerá. Suponho que só no final do ano ou até depois ela poderá arrancar com as suas importantes missões de regulação, fiscalização e aplicação de coimas, não por espírito castigador mas com bomsenso em defesa dos interesses dos consumidores de media.

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