Opinião
Desconfinar com sucesso
O grau de contágio da covid-19 deixa claro que é a atitude cívica a primeira e mais eficaz linha de defesa contra a pandemia, de forma que a ação da saúde pública e do Serviço Nacional de Saúde possam atuar de modo residual.
O desconfinamento é a primeira etapa no caminho para o “novo normal”, no qual conviveremos com a covid-19 até termos capacidade para uma ofensiva final, armados com uma vacina eficaz. O objetivo é que o “novo normal” permita a reativação da atividade económica após dois meses ligada ao ventilador durante o confinamento. Só assim conseguiremos evitar a catástrofe económica depois de termos evitado uma catástrofe epidemiológica.
Sabemos, pelo que tem sucedido em alguns países asiáticos, que essa convivência é possível e que a capacidade de reação da economia é boa. Segundo dados recentes, publicados pela Bloomberg, na China, as vendas a retalho e a produção já terão recuperado metade da queda durante o confinamento quando comparado com o período homólogo. Por sua vez, surtos eventuais podem ser circunscritos e controlados se forem identificados e atacados com rapidez e eficácia, como foi o caso do contágio nas residências de trabalhadores imigrantes em Singapura. No entanto, esses exemplos sugerem que teremos de assumir atitudes e comportamentos que, não sendo instintivos para muitos, exigirão uma superação de cada um de nós e das nossas organizações e instituições. Para sermos bem-sucedidos, como comunidade, na convivência com a covid-19.
A condição mais relevante é reconhecer a primazia da saúde pública. Sem segurança para a saúde de cada um de nós e das nossas famílias, não haverá vontade de ir a um restaurante ou de recorrer ao comércio nem disponibilidade para viajar nos transportes públicos ou de estar no local de trabalho. A oposição entre a saúde pública e a economia é um dos mitos urbanos desta pandemia. Sem saúde pública não há confiança, sem confiança não há economia. O desafio desta, perante a ameaça constante de um vírus do qual ainda sabemos pouco, exige três princípios fundamentais sem os quais o desconfinamento não será bem-sucedido.
O primeiro é a humildade do gradualismo. O facto de sabermos ainda pouco exige que o processo de desconfinamento seja lento e gradual. Isto dá-nos a possibilidade de ir aprendendo mais sobre as implicações de cada medida e a possibilidade de as corrigirmos antes que as fragilidades se transformem num novo e incontrolável surto que exigirá um novo confinamento. Se as empresas portuguesas foram capazes de sobreviver a dois meses de confinamento e são capazes de reativar os seus processos produtivos, com trabalhadores já familiarizados com os mesmos, já a expectativa de mais um período de dois ou mais meses de confinamento (caso seja necessário) implicará uma destruição sem precedente do nosso tecido económico. Isto fará com que a recuperação depois de epidemia seja muito mais lenta.
O segundo princípio é a eficácia da máquina da saúde pública no Estado. Independentemente dos debates ideológicos, frequentemente pouco esclarecedores sobre o papel do Estado na economia, ninguém tem dúvida de que a manutenção da saúde pública é uma das suas missões críticas. Se durante o confinamento o Serviço Nacional de Saúde assumiu preponderância, a última linha de defesa neste período será a capacidade de identificar, circunscrever e debelar possíveis focos de infeção de forma rápida e eficaz. Neste aspeto, a capacidade de teste em Portugal – entre as melhores do mundo se tivermos em conta a dimensão do país – é um bom prenúncio para este período. Mas também será necessário identificar contactos e vigiar quarentenas.
O terceiro é a responsabilidade. O grau de contágio da covid-19 deixa claro que é a atitude cívica a primeira e mais eficaz linha de defesa contra a pandemia, de forma que a ação da saúde pública e do Serviço Nacional de Saúde possam atuar de modo residual. O uso da máscara, as práticas de higiene ou o distanciamento social farão parte da etiqueta social do novo normal. Mas as dificuldades surgirão quando as escolhas forem mais difíceis. A capacidade dos restaurantes, e outros locais de consumo público, ou as práticas de segurança sanitária afetarão negativamente a rentabilidade de muitas empresas. A tentação de ignorar algumas regras, muitas vezes na expectativa de que o pior não acontecerá, é um instinto normal neste contexto. A responsabilidade fará a diferença. Iludir as diretivas poderá permitir pequenas poupanças a curto prazo, mas porá em risco a sobrevivência a longo prazo – não só da empresa envolvida, cuja confiança ficará para sempre abalada com o acender de um foco infecioso –mas também da economia nacional, dependente da confiança de todos na saúde pública. Ao contrário da tradição liberal da mão invisível, perante a ameaça da pandemia, o nosso sucesso advirá sempre do contributo que o nosso comportamento possa ter relativamente ao sentimento de confiança do qual todos podemos beneficiar. E essa confiança, que demoramos a construir e leva apenas alguns segundos a destruir, é particularmente importante no posicionamento de Portugal perante os destinos turísticos concorrentes.
Para além do civismo, o sustento dessa responsabilidade será a inovação. Para evitar a tentação de abusar da sorte, as empresas, sobretudo em setores como o comércio e a restauração, que verão a sua rentabilidade ameaçada, devem continuar a inovar com novas formas de gerar receita e chegar a mais e novos clientes, como o fizeram muitos durante o tempo do confinamento. Quem sabe aliás, se esta dinâmica não alterará para sempre os modelos de negócio destes setores e estas iniciativas de inovação não determinarão o sucesso competitivo muito para além do período da epidemia.
O sucesso do “novo normal” dependerá do gradualismo e da humildade com que aprendermos a lidar com o vírus, da eficácia do sistema nacional de saúde pública em identificar e circunscrever novos surtos e da responsabilidade com que cada um de nós, individualmente e nos nossos negócios, abordaremos a vida com o vírus e da capacidade de inovação que a sustentará. Durante o período de confinamento, Portugal e os portugueses demonstraram que essas características estão bem vivas na nossa comunidade e no nosso Estado. O desafio que está, portanto, ao nosso alcance é não desperdiçar nada do que conseguimos alcançar juntos nos últimos oito anos.