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17 de Janeiro de 2021 às 19:30

E depois do adeus…

As soluções identitárias são incapazes de resolver os problemas como se viu após o mandato de Trump. A eleição de Biden abre a porta a uma nova era. Mas, sem resolver as causas da questão o risco de uma nova vaga populista a prazo é real.

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As primeiras semanas de 2021 vivem-se com mais demonstrações do impacto do populismo. Nos Estados Unidos, assistimos ao vivo à disrupção das práticas democráticas pela insanidade coletiva dos apoiantes do Presidente Trump. A preocupação é que Biden não resista às forças populistas no seu próprio partido. Em Portugal, as sondagens apontam para uma votação crescente em candidatos populistas para a eleição presidencial. Movimentos semelhantes têm crescido por toda a Europa e muitas outras partes do mundo durante a última década. De onde vem esta vaga populista? 

 

Na ressaca de liberalismo individualista e do politicamente correto do período desde os anos 1970, a última década assistiu à explosão da política identitária e do populismo. Estes movimentos têm em comum um alinhamento político baseado na identidade com um grupo que exclui e se define por oposição a outros, na divisão da sociedade entre as "pessoas de bem" (o meu grupo) por oposição às pessoas de mal (os outros grupos). Tal atitude torna impossível a convergência e o consenso democrático.

 

O que é paradoxal é que o alinhamento identitário pode levar a que as pessoas votem contra aquilo que, racionalmente, são os seus interesses, criando uma esquizofrenia política. A estratégia do líder populista é apontar soluções simples de comunicar, independentemente da complexidade dos problemas. Estas soluções não têm de ser eficazes e passam por agredir/excluir/desapropriar outros grupos (as minorias étnicas, os ricos, os estrangeiros) com base numa narrativa que faz deles bodes expiatórios emocionais do problema - ênfase no emocional. São exemplos destes bodes expiatórios para os populismos da nossa era: os emigrantes que são fundamentais para a sustentabilidade dos sistemas de segurança social; a iniciativa privada e os empresários que são o motor da criação de emprego; os que recebem assistência pública; ou os governantes que fazem funcionar o Estado. O psicólogo americano Jonathan Haidt, em "The Righteous Mind," argumenta que na base dos julgamentos políticos e morais estão as emoções e a afetividade, e que a análise e a retórica racional servem sobretudo como racionalização posterior e como ferramenta para argumentar socialmente. As emoções de pertença a um grupo e de assalto e responsabilização de outro grupo são fortemente motivadoras, quando as dificuldades do dia a dia assolam a esperança e as soluções eficazes escasseiam.

 

Normalmente, os grupos identitários não conseguem votos suficientes para chegar ao poder sozinhos. Sendo as motivações emocionais identitárias fortes, outras emoções mais positivas, as lições da história e o desenvolvimento intelectual fazem com que os aderentes a estas propostas sejam minoritários. Por outro lado, a rivalidade entre os grupos populistas e a impossibilidade ontológica de convergência põem limites ao seu crescimento - ou talvez sejam as minhas próprias emoções a falar.

 

No entanto, o fenómeno Trump demonstra, como outros antes já o fizeram, que é possível a estes grupos liderarem coligações mais vastas por convergência pragmática e pontual com outras plataformas políticas. Muitos dos eleitores de Trump não concordam com as suas propostas mais demagogas e xenófobas, mas estão alinhados com outras preocupações (i.e. menos impostos, menos regulação) e consideram que é possível coabitar com as partes mais populistas da agenda identitária. Os acontecimentos nos Estados Unidos demonstram que há um limite para essa convergência, pois uma demasiado populista destrói a coligação que a sustenta. Mas os últimos quatro anos mostram que esse limite pode ir bem longe e pôr em risco as instituições, como na Polónia e na Hungria.

 

Mas porque cresceram estes movimentos nas últimas décadas, sobretudo a partir da crise financeira de 2008? A meu ver, explica-se pelas forças que fizeram explodir a desigualdade e estão a assolar a classe média. A partir dos anos 1960, a convergência salarial, a explosão da classe média e os desenvolvimentos intelectuais, sociais e políticos após a guerra do Vietname geraram uma sociedade bastante coesa, otimista quanto ao futuro e com um sonho partilhado. As dificuldades das minorias, definidas em termos da sua raça, género, religião ou orientação sexual tornaram-se preocupação central para uma maior harmonia social, e a ideologia reinante assacava à maioria a responsabilidade pela situação e, portanto, pela sua correção. Os governos e as elites investiram em proteger e apoiar as minorias, e muitos programas públicos foram criados. O crescimento económico era forte e sustentava financeiramente esses programas.

 

Nos últimos 20 anos, a desigualdade explodiu em todo mundo, resultado de forças da globalização, da tecnologia e da estagnação da produtividade, levando à criação de um espectro grande da sociedade com mais dificuldades e menos esperança. Este grupo, que cresce todos os dias, sabe de muitos programas que protegem as minorias - generalizando pelas redes sociais os episódios em que alguns são abusados, mas não veem dinâmicas sociais e políticas que os apoiem a eles nas suas dificuldades. A reação emocional é, logicamente, de rivalizar com aqueles que beneficiam dos programas e de se definirem contra eles. O desafio é que, independentemente da eficácia dos programas de apoio, a magnitude das forças que geram a desigualdade crescente e a fragilidade financeira dos Estados não permite pôr em marcha programas que endereçam tal dificuldade.

 

Eis-nos na dificuldade política da próxima década. As forças que promovem a desigualdade estão para ficar e os mais desfavorecidos estão cada vez mais suscetíveis à demagogia populista. As soluções identitárias são incapazes de resolver os problemas como se viu após o mandato de Trump. A eleição de Biden abre a porta a uma nova era. Mas, sem resolver as causas da questão o risco de uma nova vaga populista a prazo é real.

 

Infelizmente, as propostas de soluções para os desafios socioeconómicos tardam a surgir. A dinâmica reformista que se viveu no princípio do século com propostas de flexissegurança, de parcerias público-privadas eficazes e da agenda reformista de Lisboa foi-se como o bebé com a água do banho, devido ao descrédito da liberalização financeira que levou à crise de 2008. Em alternativa, voltámos às agendas rígidas, intervencionistas e reguladoras, pensadas para uma realidade com mais de um século. A pressão sobre Biden, à semelhança de Macron, é de idealizar uma política económica e social verdadeiramente voltada para as realidades do século XXI.

 

Os otimistas consideram que o pêndulo da história vai inevitavelmente virar para impressões mais positivas da natureza humana. Os pessimistas sabem que, muitas vezes na história, os movimentos deste pêndulo levaram-nos a lugares muito escuros. Os pragmáticos estão conscientes de que a única forma de virar depressa o pêndulo é pensar numa arquitetura social e política alternativa aos paradigmas que surgiram para a realidade do século XX. Infelizmente, estamos cada vez mais sob influência do regresso às ideologias do século XX e menos do pragmatismo com vistas no futuro. O progresso é lento, muito lento… e a resposta ao populismo é urgente.

 

Professor na Nova SBE

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