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Daniel Traça - Professor na Nova SBE 16 de Março de 2021 às 09:20

Quem paga a crise?

O sucesso recente da economia portuguesa na contenção do défice e da dívida pública tem sido instrumental para a recuperação da imagem do país e para a atração de investimento estrangeiro. Para continuar nessa senda, este compromisso não pode ser posto em causa.

Com a estimativa para o défice das contas públicas e da dívida pública a escalar para 7,3% e para 133% do PIB, respetivamente, a questão de como pagar a conta da pandemia está na ordem do dia. A tentação é sempre a de passar a conta para outros, onde os mais jovens, com menos poder político, acabam sempre por assumir a conta através do crescimento da dívida.

Um acontecimento como esta pandemia, que ocorre uma vez em cada 100 anos, é o exemplo acabado onde devemos partilhar custos com as próximas gerações. O azar de ter caído sobre nós este pesadelo, com um custo inestimável em vidas humanas, certamente receberá dos anais da história a solidariedade das gerações futuras. Essa solidariedade implica também a disponibilidade para suportar uma parte dos custos associados com a pandemia. Da mesma forma, ninguém censura um crescimento da dívida durante uma guerra ou um terramoto. Mais do que uma questão de justiça, esta é também uma questão financeira: um custo extraordinário partilhado por 50 ou 100 anos é insignificante. Assim sendo, fazer crescer a dívida por causa dos custos extraordinários da pandemia é apenas eficiente e justa gestão financeira. A emissão de dívida solidária pela Comissão Europeia, no âmbito da Next Generation EU, contribui para resolver este desafio, partilhando o encargo entre os europeus. O que cair na dívida pública nacional será responsabilidade partilhada com os portugueses futuros. Num mundo ideal, poder-se-ia lançar um imposto especial para cobrir os custos da pandemia para os próximos 30 anos diretamente ligado a dívida emitida a esse prazo, mas a falta de credibilidade do Estado português em compromissos de longo prazo e o potencial para abusar dos futuros contribuintes tornam a ideia impraticável.

O sucesso recente da economia portuguesa na contenção do défice e da dívida pública tem sido instrumental para a recuperação da imagem do país e para a atração de investimento estrangeiro. Para continuar nessa senda, este compromisso não pode ser posto em causa. Pelas razões referidas acima, os acontecimentos de 2020 e 2021 poderão não prejudicar essa imagem, desde que aplicados apenas aos custos extraordinários da pandemia, associados nomeadamente ao SNS e às medidas extraordinárias de apoio, como o lay-off e prestações sociais extraordinárias. Deste ponto de vista, a expansão do défice e da dívida por causa da pandemia é, ou deveria ser, muito diferente da situação vivida pela economia portuguesa no contexto da crise de 2011, onde o aumento da dívida era estrutural, nomeadamente em salários e transferências, e camuflada por desorçamentações insustentáveis.

Neste sentido, alguns dados recentes sobre a despesa estrutural são mais preocupantes que os custos extraordinários de 2020 e 2021. Se atentarmos aos funcionários públicos, que são despesa fixa do Estado, e de acordo com a Direção-Geral da Administração e Emprego Público, registou-se um aumento a 6% (quase 40 mil novos funcionários) de 2015 a 2019, invertendo o movimento de redução entre 2011 e 2015, e em 2020 aumentaram em mais 20 mil. A despesa pública aumentou 10% no triénio 2016-2019, antes do impacto da covid, depois de se ter mantido praticamente inalterada entre 2011 e 2016.

Os anos excelentes da economia portuguesa entre 2016 e 2019 permitiram um círculo virtuoso que aumentou o emprego e o PIB numa média anual de 2,2% e 2,9%, respetivamente, gerando um aumento das receitas fiscais em 14%. Mas apenas cerca de um terço do crescimento do PIB no triénio pré-pandemia foi devido à produtividade, que é sustentável no longo prazo, enquanto dois terços foram devidos ao emprego que tem hoje pouco espaço para continuar, dado o baixo nível do desemprego. Com o risco de uma desaceleração do crescimento, já previsto no fim de 2019 e agora acentuado por virtude da pandemia e pelas dificuldades estruturais da economia portuguesa, estes mecanismos indolores de ataque à dívida ficam minorados. É possível que retomemos a discussão sobre a estabilidade das contas públicas nos próximos tempos. Vão certamente culpar a pandemia, mas convém termos claras as razões dos problemas.

 

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