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Daniel Traça - Professor na Nova SBE 04 de Maio de 2021 às 19:29

Recuperação e Resiliência: não basta gastar, é preciso reformar

O impacto do PRR arrisca-se a repetir o resultado dos fundos estruturais que chegaram a Portugal desde os anos 80. Já era tempo de fazer diferente. Uma estrutura de governo do PRR mais independente, mais profissionalizada e mais apolítica poderia ajudar.

Está finalmente entregue a proposta enviada pelo Governo a Bruxelas do Plano de Recuperação e Resiliência. Como é óbvio, afasta-se pouco do projeto inicial, continuando a focar a utilização dos fundos na capacidade de intervenção social do Estado e no desenvolvimento dos funcionários da administração pública e nas competências digitais da força de trabalho.

O debate mais mediático terá sido a reduzida percentagem atribuída diretamente ao setor privado. O Governo rebate que, a jusante, toda a procura chegará às empresas privadas; mas o problema é que, subsequentemente, a capacidade de gestão estratégica esvanece-se. Podemos optar por uma ou outra empresa com maior relevância estratégica quando estamos a afetar os fundos, mas será mais difícil quando estivermos simplesmente a decidir a quem adquirir um serviço, segundo regras de concursos públicos. Poderia ser interessante colmatar esta falha com uma política de “procurement” que exigiria que apenas certas empresas poderiam ser fornecedoras em gastos associados ao PRR pelas entidades públicas, mas possivelmente esbarraria com as regras do mercado único. Para comparar, o plano recentemente aprovado nos Estados Unidos, que monta a 10% do PIB daquela economia, entregará 30% diretamente às famílias, incluindo um cheque de 1.400 dólares por pessoa para os agregados que tenham rendimentos anuais inferiores a 75.000 dólares, 45% às empresas e 25% para a administração pública e os serviços públicos em custos associados com a covid.

No entanto, e a meu ver, os três desafios mais relevantes do enquadramento estratégico do PRR refletem duas fragilidades estruturais, e frequentemente ignoradas da economia política nacional. A primeira fragilidade é a aposta repetida em criar mais recursos sem dar atenção à capacidade de os usar de forma produtiva. O país pagou caro quando investimos em autoestradas e percebemos tarde que não havia tráfego para que se tornassem produtivas. Decidimos ser o campeão da Europa a produzir doutorados e hoje temos de continuar a subsidiá-los, pois não temos empresas com dinâmica de inovação para os utilizar de forma rentável. A lição a aprender é que, quando investimos em capital físico ou humano, temos de criar os incentivos e as organizações que consigam tirar partido desse capital.

No caso do PRR, esta fragilidade implica dois desafios estratégicos no PRR. O primeiro desafio é relaciona-se com a maximização do impacto do extraordinário esforço de capacitação dos funcionários da administração pública. Independentemente de ideologias, o Estado em Portugal será sempre um elemento preponderante da economia e a melhoria da sua eficácia é importante para o desenvolvimento do país. A capacitação das pessoas da administração pública é fundamental para essa eficácia e a aposta do PRR é acertada. Mas terá pouco efeito se o funcionamento do Estado não se alterar; nomeadamente, se continuarmos a valorizar pouco o mérito nas promoções, a não focar a avaliação nos resultados obtidos, a não incentivar os funcionários públicos e a correr riscos e a inovar, a gerir com base na interpretação jurídica da lei independentemente dos resultados, e muitos outros aspetos do funcionamento da administração pública portuguesa que estão ultrapassados. Assim, é fundamental uma reforma transversal da administração pública ao mesmo tempo que capacitamos as suas pessoas. Esta é uma reforma que não consta dos planos do Governo. É uma reforma difícil, que o governo anterior foi incapaz de levar a cabo mesmo sob a pressão da troika. Para além de afetar o impacto dos montantes que serão gastos na capacitação dos funcionários, o seu adiamento desperdiça um enquadramento financeiro irrepetível para assegurar o apoio uma coligação de interesses suficientemente ampla.

O segundo desafio, ainda relacionado com a primeira fragilidade, é a capacidade das empresas portuguesas para levarem a cabo a modernização estratégica no digital, na internacionalização e na sustentabilidade que permitam tirar partido do investimento em capital humano inscrito no PRR. Sem empresas capacitadas na sua gestão e liderança para tirar partido do upskilling digital que o PRR gerará na força de trabalho nacional, o impacto na economia nacional será menor. Capacitados com conhecimento de fronteira nas áreas digitais e de programação, mas sem empresas dinâmicas nacionais capazes de os contratar, os trabalhadores terão de optar entre o desemprego, a emigração ou o subemprego (com remuneração e responsabilidades abaixo das suas competências).Claro está que, numa económica global dinâmica haverá sempre empresas, no estrangeiro ou multinacionais em Portugal, para atrair estas pessoas, mas o resultado será menos controlo estratégico e menos lucros para os portugueses. É o dejà vu da economia nacional desde 1990. Este é o principal efeito da falta de aposta estratégica do PRR na modernização e dinamização do tecido empresarial em Portugal. E não há efeitos a jusante que o resolvam.

Por último, o terceiro desafio do enquadramento estratégico do PRR, reflete a segunda fragilidade estrutural da nossa economia. De um plano com esta ambição exigem-se resultados e responsabilidades com prazos claros. Esses resultados e responsabilidades implicam um alinhamento claro com indicadores e métricas que definam sucesso. Onde queremos estar daqui a dez anos e como o mediremos? Exige também uma estrutura profissional e independente que acompanhe a implementação ao longo deste período para corrigir os desvios que se vão verificar e que seja responsabilizada pelo sucesso ou falta dele. Esta abordagem estratégica é alheia ao que se quer fazer em Portugal. A métrica de sucesso associada é, única e simplesmente, a execução do plano, isto é, o gastar das verbas. O resultado que daí advirá para o país é um efeito colateral. Neste sentido, o impacto do PRR arrisca-se a repetir o resultado dos fundos estruturais que chegaram a Portugal desde os anos 80. Já era tempo de fazer diferente. Uma estrutura de governo do PRR mais independente, mais profissionalizada e mais apolítica poderia ajudar. Uma possibilidade seria a intervenção na monitorização da implementação e do impacto dos centros de conhecimento das universidades portuguesas.

 

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