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Daniel Traça - Professor na Nova SBE 15 de Novembro de 2020 às 17:29

Lições americanas

Quando são excluídas, as pessoas não mudam para ser incluídas, tornam-se mais radicais, deixam de ouvir e passam a funcionar em circuito fechado. É uma reação muito humana de negação da realidade.

A eleição de Biden foi saudada por todos aqueles que acreditam nos valores liberais pelo mundo fora. Há quatro anos, com a eleição de Donald Trump, à qual se seguiria a votação pelo Brexit e o crescimento de partidos e governos de extrema direita no mundo ocidental, a ameaça de uma viragem "fascizante" assustava os democratas liberais de mundo. Até em Portugal, essa vaga terá surpreendentemente chegado com a votação em partidos fora da direita tradicional. Será que, por contraste, a derrota de Trump é prenúncio do fim dessa vaga? O que podemos aprender com o resultado eleitoral americano, na Europa e em Portugal?

 

O primeiro fator a notar é que a votação em Donald Trump foi, em termos absolutos superior à que teve em 2016, apesar de quatro anos do seu comportamento aberrante e de uma gestão desastrosa de um cenário excecional como a pandemia. Qual teria sido o resultado sem a pandemia, sem os tweets e os comportamentos psicóticos, mas com as mesmas políticas contra o ambiente, de expansão da dívida, de violação dos direitos humanos dos emigrantes, de destabilização da ordem mundial, etc.? Possivelmente uma vitória esmagadora. A lição a retirar é o apelo crescente dessas políticas em alguns setores da população. A pressão dos choques da globalização, da tecnologia, das desigualdades, da sustentabilidade e a incapacidade das nossas instituições, desenhadas na realidade muito diferente da segunda metade do século XX, para gerar novas políticas continua a criar uma enorme ansiedade nestas populações, apelando a soluções populistas, pouco eficazes, divisivas e insustentáveis. Segundo um estudo de Edelman Trust de 2019 realizado em 27 países sobre a instabilidade laboral, 59% dos trabalhadores consideram-se em risco de perda de emprego por não terem as competências necessárias, 55% temem ser substituídos por novas tecnologias e 57% têm receio pelas políticas comerciais e tarifárias. Os valores são mais elevados para quem trabalha em multinacionais. Assim, é fundamental continuar o trabalho de encontrar soluções para estas preocupações e reconhecer que têm de ser diferentes das propostas do século XX, pois os desafios são igualmente diferentes.

 

O segundo fator é o poder da energia negativa em eras de ansiedade. Donald Trump dividiu a América, governou apenas para os seus, diabolizou os adversários políticos como inimigos e teve a maior votação de um presidente em exercício de sempre. A arte da vitimização e do conflito entre as massas e as elites como plataforma política para a conquista do poder voltou a demonstrar a sua eficácia, agora potenciada pelas redes sociais. Na sua ansiedade e insegurança, e nas reações muitas vezes fora do quadro mental das elites, as massas que sofrem não se devem sentir isoladas em nome da "political correction" da construção ideológica liberal da segunda metade do século XX. Quando são excluídas, as pessoas não mudam para ser incluídas, tornam-se mais radicais, deixam de ouvir e passam a funcionar em circuito fechado. É uma reação muito humana de negação da realidade. Assim, é preciso reconhecer as dores que sentem, dialogar para estabelecer plataformas políticas inclusivas, focar no que une e não no que separa e falar com empatia e realismo em vez de superioridade intelectual. Biden, no seu discurso focou na necessidade de ser presidente de todos - e tem de ser de todos, não de todos os que concordam com ele.

 

Felizmente, Biden ganhou. Muitos republicanos repeliram as teses divisivas de Trump e apoiaram Biden, e já o felicitaram pelo resultado alcançado. É uma vitória que enche de esperança o mundo e aqueles que acreditam nos valores de uma sociedade liberal, inclusiva e fraterna. A maior parte dos que votaram Trump acredita nesses mesmos valores, ou pelo menos não se opõem a eles, como se pode depreender do seu pudor em reconhecer nas respostas às sondagens as suas escolhas eleitorais. O desafio de quem governa é reconhecer a necessidade de encontrar soluções para as dificuldades que os afligem e encontrar pontos de convergência que permitam o início de um diálogo. A capacidade de incluí-los numa plataforma moderada é o grande desafio de Biden. É um desafio que é de todo o mundo ocidental liberal incluindo Portugal. Quanto mais cedo aprendermos as lições, mais cedo criamos um novo caminho para o futuro, com menos ansiedade e mais esperança.

 

Professor na Nova SBE

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